Kate Winslet tem mais uma composição invulgar na mini-série Mare of Easttown (HBO): talentosa e versátil, a estrela de Titanic nunca cedeu à fabricação de um estereótipo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (15 maio).
Na multifacetada carreira de Kate Winslet, Mare of Easttown (mini-série de sete episódios a passar na HBO) envolve uma novidade: pela primeira vez, ela assume as funções de produtora executiva. Não é, obviamente, um facto isolado: o prestígio de muitos actores e actrizes permite-lhes envolverem-se nas produções que protagonizam, influenciando a respectiva concepção dramática ou narrativa, na prática tirando partido do poder efectivo de ser uma estrela.
De qualquer modo, podemos supor que não terá sido uma mera questão de produção a motivar o envolvimento da actriz inglesa. Se é verdade que, para o melhor ou para o pior, a sua “imagem de marca” está associada a personagens de raiz ou aparência aristocrata — a começar, claro, pela jovem Rose Dewitt de Titanic (1997) —, pode dizer-se que o papel de Mare Sheehan, detective de uma cidadezinha da Pensilvânia, nos arredores de Filadélfia, lhe permite aquilo que qualquer intérprete inteligente sempre procura: arriscar em registos que contrariam a ilusória estabilidade da sua fama, neste caso muito longe de qualquer sugestão de “glamour”.
Mare é uma figura de fascinantes contrastes dramáticos, ligada à terra, alheia a qualquer “pureza” aristocrata. Além do mais, vive num turbilhão emocional: da frieza intelectual com que é seu dever investigar os crimes que assombram Easttown aos conflitos crónicos com a mãe e a filha, passando pela pesada herança emocional de um filho que se suicidou…
Na verdade, Mare of Easttown está longe de ser uma vulgar intriga policial, multiplicando suspeitas em torno de um pequeno núcleo de personagens. Claro que esse jogo de inocência e culpas, com o seu quê de Agatha Christie, está na série criada e escrita por Brad Ingelsby, com realização de Craig Zobel. Ainda assim, o que nos envolve, confunde e seduz decorre de uma teia de relações que vai sendo desvendada para lá da banalidade de um quotidiano contaminado por muitos fantasmas e bizarrias.
Nesta perspectiva, Mare of Easttown é uma série devedora da herança de um certo cinema clássico de Hollywood, muitas vezes de inspiração literária, focado precisamente nas atribulações de pequenas comunidades — lembramo-nos, por exemplo, da obra de Vincente Minnelli e de títulos como Paixões sem Freio (1955) ou A Herança da Carne (1960). Aí deparamos com ambientes que reflectem o apelo utópico do “Sonho Americano”, celebrando uma ideia de povo que, não poucas vezes, se desagrega de forma trágica. Mildred Pierce, uma série da HBO lançada em 2011, também protagonizada por Kate Winslet, poderá ser outra referência exemplar: baseada no romance de James M. Cain, com direcção de Todd Haynes, nela encontramos um retrato contundente do período da Grande Depressão, oscilando entre a crueza realista e a impossível atracção do romantismo.