quinta-feira, junho 24, 2021

Amor, ódio, acção, violência e morte

Élie Faure lido por Jean-Paul Belmondo

Pedro, o Louco, de Jean-Luc Godard, clássico da Nova Vaga francesa, está numa plataforma de streaming, é tempo de voltar a celebrar as “emoções” — este texto foi publicado no Diário de Notícias (30 maio).

As primeiras palavras que escutamos são estas: “Velázquez, depois dos 50 anos, deixou de pintar coisas definidas. Pairava em torno dos objectos, com o ar e o crepúsculo, extraía cores vibrantes da sombra e da transparência dos fundos e fazia delas o centro invisível da sua sinfonia silenciosa. Do mundo, colhia apenas essas trocas misteriosas que permitem que as formas e as tonalidades se misturem numa progressão secreta e contínua que nenhuma colisão ou movimento involuntário pode deter ou trair. O espaço reina. É como uma onda aérea deslizando sobre superfícies, absorvendo as suas emanações visíveis para as definir e moldar. Transporta-as como um perfume, como um eco, e espalha-as por todo o lado como uma poeira imponderável.”
São as palavras de abertura de Pedro, o Louco, o lendário Pierrot le Fou que Jean-Luc Godard realizou em 1965, agora disponível numa plataforma de streaming (Filmin). Provêm da História da Arte (1919-1921), de Élie Faure. Quem as lê é Jean-Paul Belmondo, intérprete de Pierrot que, ao longo do filme, não se cansa de dizer a Anna Karina que “o meu nome é Ferdinand”. Belmondo está sentado numa banheira, a fumar, com o livro de Faure nas mãos; chama uma menina para acompanhar a sua leitura, “escuta isto, pequenina…”, no final perguntando-lhe: “É bonito, não é?”


Revejo, escuto de novo, pela enésima vez. Pedro, o Louco, objecto mágico da cinefilia clássica, é essa aventura inclassificável de um homem e uma mulher através dos cenários da “sociedade de consumo” (a expressão é uma pérola incontornável dos anos 60), numa demanda que nasce do poder primordial das palavras. Neste caso, da aliança simbólica da escrita de Faure com a pintura de Velázquez, porventura antecipando o auto-retrato de Godard, dois anos mais tarde, no filme Duas ou Três Coisas sobre Ela, definindo-se como “escritor e pintor”.
Ao mesmo tempo (mas o tempo nunca é o “mesmo”), pressinto o efeito cruel das distâncias — todas as distâncias, as do calendário e as outras. E pergunto-me: onde estão os espectadores que reconheçam, admirem e explorem o facto de o cinema poder ser um fenómeno audiovisual cuja raízes estão, não na fotografia, mas na literatura?
Não, não se trata de inventariar os filmes como se todos fossem obrigados a ser “adaptações” de romances — sabemos do mau cinema (e da péssima televisão) que se faz a partir de grandes livros. Trata-se, isso sim, de conhecer e reconhecer o cinema como um labor que, directa ou indirectamente, envolve o poder das palavras e as nossas relações com a escrita.
Esse poder e essas palavras ecoam na infinita sedução das imagens (e dos sons), permanecendo como um elo primordial com tudo aquilo que é anterior ao conceito de “reprodução” consagrado pelas artes fotográficas. Mais ainda: a disponibilidade para escutar é um modelo de educação (“escuta isto, pequenina…”) que tem sido minimizado pela histeria do visual e, no caso do cinema, junto de muitos espectadores mais jovens, pela banal acumulação de “efeitos especiais”.
A própria vulgarização da expressão “efeitos especiais” tem funcionado como empobrecimento da visão e motor de ignorância. Por um lado, omite-se o facto de as manipulações das imagens cinematográficas não serem uma “invenção” dos estúdios Marvel porque, de facto, começaram há mais de um século (veja-se e reveja-se o genial Méliès); por outro lado, há uma ideologia insidiosa, misto de presunção ética e novo-riquismo estético, que tenta fazer crer que tais “efeitos” são necessários para compensar as “limitações” das imagens que os não utilizam. Pedro, o Louco é mesmo um filme que transporta a “mensagem” de um desejo radical — tudo é possível —, por muitos espectáculos do século XXI destruída em nome do infantilismo tecnológico e da boçalidade tecnocrática.
Numa cena emblemática, as palavras ditas pelo cineasta americano Samuel Fuller (1912-1997) são mais belas do que nunca. Fuller responde a Belmondo que quer saber “o que é o cinema, exactamente”. Diz ele: "um filme é como um campo de batalha” em que encontramos “amor, ódio, acção, violência e morte”. Resumindo: “emoções”. Estamos prontos para seguir a aventura de Pierrot. Aliás, Ferdinand.