"Doppelgänger" (2001) — jogo de espelhos, sedução do duplo |
De Julião Sarmento recebemos a herança de um olhar que oscila entre os limites do corpo e uma hipótese de infinito — este texto foi publicado no Diário de Notícias (9 maio).
Ser espectador. Eis a expressão mais simples que, a meu ver, pode definir o paradoxo de avidez e serenidade inscrito na arte de Julião Sarmento (1948-2021). Lembro-me de, um dia, nos tempos heróicos da Secretaria de Estado na Cultura no prédio do restaurante Galeto, na avenida da República, em Lisboa, ele me falar do filme que tinha visto na véspera através de uma confissão em suspenso: “Não sei se gostei ou não gostei…” Não era blague. Não era bluff. Tão só uma manifestação da disponibilidade de quem, sendo espectador, sabe ser também o paciente cultivador das suas próprias dúvidas. E avançar, duvidando.
A pluralidade da sua obra — desenho, pintura, fotografia, cinema, instalações, etc. — decorre dessa mesma disponibilidade, transfigurada em pensamento que caminha, pé ante pé, sobre as fronteiras instáveis de qualquer intervenção artística. O que nos conduz a outro paradoxo: por um lado, Julião possui a consciência moderna (ou pós-moderna, se assim preferirem) que reconhece, e explora, o facto de todas as formas de intervenção artística viverem em permanente contaminação; por outro lado, isso nunca o impediu, bem pelo contrário, de criar objectos que existem como entidades autónomas, por vezes monumentais, alheios ao charivari “multimedia” que, salvo honrosas excepções, passou a sustentar uma espécie de turismo cultural com muitas imagens e escassa imaginação.
Lembro-me, por exemplo, da descoberta da sua instalação intitulada “Rosebud” (Galeria Diferença, Lisboa, 1980). A memória é tanto mais forte quanto a proposta de Julião se distinguia por uma pudica alegria. Em vez de se deixar diluir na agitação “ideológica” que, então, rasgava a sociedade portuguesa, a sua instalação devolvia-nos uma interrogação primordial: afinal, o que vemos? Desembocando na questão política, por excelência: como vemos aquilo que dizemos ver?
O título da instalação convocava a nossa cinefilia para um importante eco simbólico: antes mesmo de entrarem nas três salas da instalação, os visitantes não podiam deixar de recordar “Rosebud” como a palavra que, antes de morrer, Charles Foster Kane pronuncia na cena de abertura do filme O Mundo a Seus Pés (1941), de Orson Welles. Ora, lá dentro, através de um jogo, ou melhor, uma cenografia de ecrãs e diversos elementos figurativos, descobríamos que não se tratava de desmontar o enigma de “Rosebud”, mas sim de resistir a qualquer racionalização fácil e determinista.
Passaram-se mais de quarenta anos sobre a instalação de Julião (e oitenta sobre o filme de Welles), mas a “mensagem” permanece intacta. A saber: podemos querer encerrar o mundo num qualquer sentido redentor, mas os elementos desse mundo multiplicam sempre as suas significações, reabrindo a possibilidade de discutirmos o que representam, dizem ou transmitem. Sem dúvida por isso, Julião gostava de integrar aquilo que, face a uma forma, concreta ou abstracta, humana ou animal, funciona como duplo, sósia ou, no limite, fantasma.
Julião Sarmento |
Haverá outra maneira, creio, de dizer isto: Julião devolve-nos o mundo como um sistema de elementos em que cada elemento atrai um “duplo” que o confirma e desmente. Como se tudo passasse, realmente, pela herança que recebemos de Shakespeare: “ser ou não ser.”
Esotérico? O esoterismo está na ilusão segundo a qual cada entidade — uma pessoa, um gesto, um golo de futebol — se pode reduzir a um significado único e definitivo, como um destino a que não é possível escapar. Julião Sarmento não pertence a essa religião mediática. Define-se como artista de uma melancolia que nos faz saber que habitamos os limites no nosso corpo, perscrutando o infinito daquilo que podemos ser ou imaginar. Apesar de tudo, somos humanos.