quinta-feira, maio 27, 2021

Orson Welles
— assim nasceu o cinema moderno [2/3]

Com O Mundo a Seus Pés, depois do teatro e da rádio, Orson Welles estreou-se na realização de filmes: a sua visão, marcada pelo gosto da experimentação, mudou a arte de contar histórias em cinema — este texto foi publicado no Diário de Notícias, por ocasião do 80º aniversário da respectiva estreia (1 maio).
 
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O assombramento de [William Randolph] Hearst pesou, e continua a pesar, na definição “temática” de O Mundo a Seus Pés. Sempre que se elabora alguma lista de clássicos sobre jornalismo, o filme de Welles surge com grande destaque. E há boas razões para isso: através do seu New York Inquirer, o “Cidadão Kane” constrói um império jornalístico contaminado por mecanismos viciados, especulação e difamação, ao mesmo tempo que vai alimentando as suas ambições políticas (chegar a governador do estado de Nova Iorque). Através do seu anti-herói, Welles filmou um conto moral sobre um tema de perturbante actualidade. A saber: o modo como a imprensa é, para o melhor ou para o pior, um factor decisivo na nossa percepção do mundo.
Seja como for, um filme nunca se reduz à “ilustração” de um tema. Um filme é também (é mesmo sobretudo) uma encruzilhada de informações e emoções que, em última instância, nos confronta com a intimidade da nossa condição humana. Este Kane que tudo possui ou pode possuir — vive mesmo num imenso domínio privado, Xanadu, que vai povoando com todo o tipo de aquisições, desde os objectos de arte até aos animais selvagens —, é também um ser que parece ter perdido algo de vital. Sinal emblemático da sua perda é a palavra que, logo na cena de abertura, balbucia antes de morrer: “Rosebud”.
 

Que significa Rosebud? A construção do filme confunde-se com o mistério que a palavra instala. Num ziguezague espacial e temporal, seguimos um repórter que entrevista diversas personagens que conviveram com Kane, cada uma delas confrontada com o enigma de Rosebud… Ninguém sabe o que significa, mas todos (incluindo o espectador) pressentem que é um pormenor vital para organizar a sua biografia.
Welles desafiava os modelos dramáticos tradicionais, a começar por aquele que trata a morte de uma personagem como uma espécie de pontuação final que encerra o “sentido” da sua vida. Ora, em O Mundo a Seus Pés, não é apenas a morte de Kane que, em vez de fechar, abre o filme; além disso, a palavra Rosebud desenha uma ponte insólita entre a realidade física e as convulsões da metafísica. Dir-se-ia que a morte de Kane não se aquieta enquanto não houver alguém que seja capaz de “decifrar” Rosebud…