Mick Jagger, Gimme Shelter (1970) |
O documentário Gimme Shelter, realizado pelos irmãos Maysles, completou meio século de existência (foi lançado a 6 de Dezembro de 1970): nele se regista o lendário e trágico concerto de Altamont, na Califórnia, com os Rolling Stones como protagonistas — este texto foi publicado no Diário de Notícias (5 dezembro).
A pandemia impediu que chegasse este ano às salas de cinema o filme The Beatles: Get Back, de Peter Jackson — teve estreia marcada para 4 de setembro, está agora agendado para 27 de agosto de 2021. O seu ponto de partida é outro filme, Let it Be (1970), de Michael Lyndsay-Hogg, sobre as sessões de gravação do álbum homónimo dos Beatles, o derradeiro da banda de Liverpool. Jackson teve acesso a todo o material filmado por Lyndsay-Hogg (55 horas!), podendo assim recontar uma despedida simbolicamente indissociável das convulsões culturais da década de 60.
Através da música, e muito para lá da música, importa voltar a questionar a visão simplista segundo a qual os sixties descobriram a ideia de “liberdade”, tendo sido vividos como um catálogo de êxtases pueris, aqui e ali pontuados por alguns excessos mais ou menos caricatos… Como se as vidas de tempos tão complexos e fascinantes pudessem ser reduzidas a essa liofilização mediática.
As memórias do filme dos Beatles são vibrantes e paradoxais. Numa época de sensibilidade potencialmente trágica, sem o moralismo quotidiano das redes (ditas) sociais, a sociabilidade das notícias envolvia outras durações e diferentes modelos de percepção. Assim, o fim dos Beatles não surgiu como manchete abrupta de determinado dia — mesmo se sabemos que foi a 10 de abril de 1970 que Paul McCartney declarou publicamente que não via hipótese de renovar a dupla criativa Lennon-McCartney —, para desaparecer poucos dias depois na voragem de outras “notícias” sobre coisa nenhuma.
Dir-se-ia que a irreversível decomposição dos Beatles se instalou, não apenas como ruptura temporal, mas também como desafio às próprias medidas do tempo. A pulsão utópica que o quarteto protagonizou (a par de muitas outras figuras da época) esvaziava-se como uma epopeia a que alguma força maligna teria roubado a redenção de um capítulo final.
A narrativa de “fim de um tempo” parece ter contribuído para que o filme Let it Be desaparecesse, até mesmo do mercado do DVD, como se o pressentimento do desenlace artístico que nele se expõe fosse mitologicamente intolerável. Seja como for, está prevista a sua reposição em paralelo com a estreia do filme de Jackson. Para já, em algumas lojas virtuais, embora mantido no catálogo, surge acompanhado por um esclarecimento bizarro: “Não sabemos quando, ou se, este item voltará a estar disponível.”
Mesmo invisível, vale a pena lembrar que Let it Be possui a capacidade simbólica de condensar alegrias e dores de uma conjuntura que, de modo exemplar, foi apropriada pelo cinema, ou melhor, também vivida através dos filmes. Igualmente emblemático dessa dinâmica é outro título estreado no mesmo ano, há precisamente meio século: Gimme Shelter, lançado a 6 de dezembro de 1970.
Trata-se de um momento fundamental na obra documental dos irmãos Albert e David Maysles, neste caso associados a Charlotte Zwerin. O título provém da canção dos Rolling Stones que serve de abertura ao álbum Let it Bleed (1969), mas o contexto é totalmente diferente daquele que gerou o filme dos Beatles: este é o registo do lendário e trágico concerto de Altamont, na Califórnia, realizado a 6 de dezembro de 1969 (um ano antes, portanto, do lançamento do filme dos Maysles).
Musicalmente exuberante, o evento ficou marcado por diversos episódios de violência. Num deles, junto ao palco, envolvendo elementos dos Hells Angels encarregados da “segurança” do concerto, morreu Meredith Curly Hunter, jovem afro-americano que completara 18 anos há pouco mais de um mês.
Numa das sequências mais perturbantes de Gimme Shelter, vemos os elementos dos Rolling Stones a assistir pela primeira vez às imagens registadas pelos Maysles, silenciosos e estupefactos perante a confusão que, em boa verdade, na altura, não conseguiram decifrar [video]. São momentos reveladores de um poder cinematográfico cuja pertinência não se perdeu: não a produção de manchetes sensacionalistas para usar e deitar fora, antes a contemplação de uma realidade irrecusável. Para muitos, os anos 60 acabaram aí — no calendário e na mitologia.