domingo, novembro 01, 2020

Duas ou três coisas sobre ela
[Téchiné, Godard & etc.]


Através de O Sal das Lágrimas, novo filme do veterano Philippe Garrel, reencontramos uma sensibilidade romanesca que, para lá das atribulações amorosas das personagens, não desiste de olhar atentamente a cidade sem ceder a descrições turísticas — este texto foi publicado no Diário de Notícias (10 Outubro). 

Roubo este título à edição portuguesa em DVD de uma prodigiosa realização de Jean-Luc Godard, datada de 1967: Duas ou Três Coisas sobre Ela corresponde a Deux ou Trois Choses que Je Sais d’Elle (à letra: “Duas ou três coisas que eu sei sobre ela”), filme em que elementos de uma investigação jornalística da revista Le Nouvel Observateur (actual L’Obs) serviam de base a um retrato do crescimento urbano de Paris, visto a partir do dia a dia de uma família. Como ficava esclarecido através de um cartão apresentado logo na abertura do filme, a palavra “ela” não se referia a uma personagem humana, mas sim à “região parisiense”.
O título vem a propósito do belíssimo O Sal das Lágrimas, do veterano francês Philippe Garrel, uma das grandes estreias cinematográficas destes últimos meses. Há nele uma confluência mágica dos elementos tradicionais e obsessivos da obra de Garrel: desde logo, o enigmático cruzamento das relações amorosas, neste caso a partir da experiência de Luc, um jovem da província a estudar marcenaria em Paris (interpretado pelo notável estreante que é Logann Antuofermo); depois, o enfrentamento da morte, figura sempre ausente que, perversamente, vai pontuando o desejo de viver (repare-se na sereníssima cena em que Luc e o pai, na sua oficina, falam sobre o futuro incerto da arte da marcenaria enquanto montam as peças de um caixão); enfim, as austeras e maravilhosas composições a preto e branco, remetendo-nos para um romanesco que não desiste das suas mais primitivas emoções (a direcção fotográfica é do grande Renato Berta que, em 2012, assinou as imagens de O Gebo e a Sombra, derradeira longa-metragem de Manoel de Oliveira). 
Ainda assim, não se trata apenas de detectar a marca do autor. Ou melhor, importa esclarecer que essa marca não decorre de um efeito abstracto de assinatura, mas sim de uma forma muito concreta — de uma só vez cinematográfica e moral — de olhar o mundo à sua volta. Dito de outro modo: Garrel continua a ser também um retratista metódico “dela”, isto é, a região parisiense. 
Aliás, se encararmos O Sal das Lágrimas sob uma perspectiva urbana ou, se quiserem, arquitectónica, deparamos com uma espécie de deambulação afectiva por muitos lugares de Paris que nunca são reduzidos a detalhes pitorescos, muito menos a postais turísticos. 
Lembremos as cenas iniciais de Luc com Djemila, uma das três mulheres que pontuam o seu destino tecido de fidelidades e traições. Enredadas em erotismo e pudor (e bem sabemos que o pudor é um valor fraco na nossa sociedade mediática, ilusoriamente libertária), tais cenas desenham um pequeno trajecto parisiense em que tudo tem vida própria, desde a fachada enrugada de um prédio até à luminosa geometria das casas antigas de dois ou três andares, contaminando a vida das próprias personagens. Recordemos, a propósito, que Djemila é interpretada pela talentosa Oulaya Amamra que, ainda há pouco tempo, descobriramos a contracenar com Catherine Deneuve em O Adeus à Noite, de André Téchiné, outra das grandes estreias deste tão insólito verão cinematográfico. 
São filmes avessos a qualquer efeito de moda, em particular a qualquer diluição em atitudes de “sociologia” normativa. Por alguma razão, o senso comum tende a classificá-los como pretensiosos, por causa das imagens a preto e branco, ou irrelevantes, já que seriam “apenas” histórias de amor e desamor. Na verdade, acontece que a sua simplicidade acaba por possuir qualquer de genuinamente perturbante. 
Em vez de inscrever as suas personagens em estereótipos bem cotados — os “jovens”, os “velhos”, a “sexualidade” —, Garrel filma tudo isso sem as transformar em símbolos ou bandeiras do que quer que seja. Na sua secura, cada ser humano existe “apenas” através de uma diferença radical que funciona como janela aberta, e também barreira invisível, para o olhar de qualquer outro. Como a cidade, sempre igual, sempre diferente por vezes, retratada a preto branco. Porque não?