Eyes, de Naixin Xu |
Eis um conjunto de cinco curtas-metragens que vale a pena descobrir numa plataforma de streaming: são histórias de amor e sexo, casais e famílias, em cenários chineses, particulares pelo contexto, universais pelas emoções — este texto foi publicado no Diário de Notícias (17 Outubro).
No ecrã negro emerge um rectângulo com olhos. São olhos que falam, apresentando os contornos de um mapa sexual, misto de objectividade e ironia: “Os homens são homens porque têm um pénis. As mulheres são mulheres porque têm uma vagina. Talvez eu seja um homem que tem uma vagina.”
Assim começa o filme Eyes, da realizadora chinesa Naixin Xu, uma muito breve (5 minutos) e fascinante curta-metragem, disponível na plataforma de streaming Zero em Comportamento. Trata-se do primeiro título de um programa intitulado “A China fora da caixa”, incluindo mais quatro curtas, produzidas em 2018-19, todas marcadas por temas e situações que envolvem as singularidades sexuais das personagens e, em particular, a possibilidade ou impossibilidade da sua mais básica aceitação familiar e social. Como se escreve no programa, são “quatro histórias da comunidade LGBTQI+, e uma história sobre os desafios sociais e psicológicos de uma sobrevivente de abuso sexual numa zona rural; os protagonistas das curtas levam-nos por lugares universais, ao mesmo tempo que partilham experiências individuais e nos desafiam para reconhecer semelhanças e entender diferenças.”
Eis algumas palavras genuinamente pedagógicas, combatendo os militantismos da moda que favorecem a noção pueril segundo a qual a sua “causa” nasceu do nada, sem memória histórica nem herança ideológica. Para nos ficarmos por um dos exemplos mais grosseiros, favorecido por muitos discursos mediáticos (incluindo alguma crítica de cinema dos EUA), observe-se como a presença de actores de pele negra na galeria de super-heróis da Marvel tem contribuído para obliterar o próprio conhecimento da riquíssima e complexa presença dos afro-americanos no património de Hollywood.
Neste caso, entenda-se, não estamos perante qualquer generalização sobre o “sexo na China”. Seria, aliás, banal demagogia tentar abarcar a pluralidade interna de tão fascinante país a partir de um programa de filmes que dura pouco mais de uma hora. A virtude primeira destas curtas decorre, justamente, da sua focagem em histórias irredutíveis, avessas a qualquer “simbolismo” mais ou menos abstracto.
Apenas o referido filme sobre um caso de abuso sexual, Ruins, de He Yi, me parece falhar completamente o objectivo: a sua construção faz-se a partir de uma memória de tal modo vaga e elusiva que vai perdendo pertinência narrativa e dramática. Dos outros, We Outlaws, de Kaixuan Huang, será o mais elaborado, explorando um sugestivo registo melodramático para encenar as vivências de um jovem operário de uma fábrica de têxteis que, durante a noite, assume uma identidade feminina objectivamente proibida por lei; a acção situa-se no início da década de 90, evocando um contexto em que, de acordo com os termos da legislação que vigorou entre 1979 e 1997, a “indecência” sexual era tratada como um crime.
Um dos filmes disponíveis segue uma lógica linear de documentário. O seu título, Tang Long, identifica a figura central, um homem que vive com o companheiro nos subúrbios de Xangai. A realização de Jiangtiang Zong dá a ver a casa do casal e vários momentos do seu dia a dia, num realismo pragmático, sem sublinhados retóricos, que desemboca nas palavras transparentes, por vezes desencantadas, de Tang Long: a sua descrição das atribulações de um casal de pessoas do mesmo sexo não exclui o reconhecimento cândido da fragilidade imensa de qualquer história de amor.
São histórias de amor, de facto. I Love You Mama, de Maya Peters (uma irlandesa a residir na China), fica como exemplo modelar dessa intensidade do impulso amoroso que não se esgota em nenhum discurso militante, mesmo quando através dele se pode exprimir. Dir-se-ia um singelo videoclip (também com 5 minutos de duração) em que uma adolescente escreve uma carta à mãe, dando conta de um simples facto: a sua orientação sexual, porventura surpreendente ou chocante para alguns outros, não altera a invencível demanda do amor materno. Como os olhos que nos falam, fazendo-nos sentir que pertencem a um corpo que não abdica de viver.