quarta-feira, novembro 25, 2020

Aaron Sorkin
— um narrador americano

Aaron Sorkin
— rodagem de Os 7 de Chicago


Criador da série Os Homens do Presidente, argumentista de A Rede Social, Aaron Sorkin regressa com Os 7 de Chicago, notável evocação da Convenção Nacional Democrata de 1968 e das convulsões legais que dela decorreram — este texto foi publicado no Diário de Notícias (7 Novembro). 

Ao ver o novo filme escrito e realizado por Aaron Sorkin — Os 7 de Chicago (Netflix) —, recordei-me das suas palavras, emocionadas e emocionantes, a 27 de fevereiro de 2011, ao receber o Oscar de melhor argumento adaptado por A Rede Social (The Social Network), a obra-prima de David Fincher sobre Mark Zuckerberg e as origens do Facebook. O seu discurso de agradecimento começou assim: “É impossível descrever o sentimento de receber o mesmo prémio que, há 35 anos, foi dado a Paddy Chayefsky por outro filme com a palavra ‘network’ no título.” 
Referia-se ele ao Oscar de melhor argumento original ganho por Chayefsky com o filme Network - Escândalo na TV (1976), de Sidney Lumet, título pioneiro na identificação das derivas populistas do espaço televisivo — valeu a Peter Finch o primeiro Oscar de interpretação (melhor actor) atribuído a título póstumo. 
Tratava-se de citar, não apenas uma inspiração e um modelo de trabalho, mas de reafirmar a vitalidade de uma genealogia narrativa visceralmente americana. Chaeyfsky, argumentista e produtor (falecido em 1981, contava 58 anos), tem o nome ligado a vários títulos marcantes na evolução do classicismo de Hollywood, incluindo a sua contaminação por componentes vindas da área da televisão: Marty (1955), de Delbert Mann, será o símbolo nuclear de tal dinâmica. 
Neste contexto em que as incidências das eleições presidenciais nos EUA são assunto transversal em todo o mundo, vale a pena lembrar que esse país — consagrado pela história, e pela sua mitologia, com uma palavra derivada de todo um continente: “América” — continua a ser isso mesmo. A saber: uma impressionante máquina geradora de narrativas, sendo o cinema um dos domínios fulcrais da sua vocação. 
Não que o “cinema americano” possa ser pensado (ou apenas descrito) como uma entidade unificada e unívoca a que apomos uma classificação “positiva” ou “negativa”. Deixemos isso para os maniqueísmos mediáticos em que nada mais existe a não ser uma guerra interminável entre “prós” e “contras” — para nos ficarmos pelo mais simples, lembremos apenas que não há maneira de conciliar a sofisticação dramática de um filme como Os 7 de Chicago com a agitação ruidosa da maior parte dos produtos saídos da fábrica de efeitos especiais da Marvel. 
Acontece que a história das narrativas cinematográficas americanas é tanto mais rica e contrastada quanto existe enredada com a história das convulsões sociais e políticas do próprio país. O génio de Sorkin manifesta-se também, por exemplo, na criação e escrita da série televisiva The West Wing/Os Homens do Presidente (1999-2006). Ou ainda nessa outra série, prodigiosa na exposição das tensões internas de um jornalismo que nunca abdica de problematizar o seu papel no interior da vida em democracia, que é The Newsroom (2012-2014). 
O fascínio de Os 7 de Chicago é tanto maior quanto nele reencontramos uma conjuntura essencial para compreendermos uma América assombrada pela guerra do Vietname e, no limite, para pensarmos os valores, enunciados e práticas da lei democrática. A evocação do julgamento dos “7 de Chicago” (o título original é, aliás, The Trial of the Chicago 7) envolve, assim, um momento emblemático da história da democracia americana: a Convenção Nacional Democrata de 1968 que levou à escolha de Hubert Humphrey como candidato à presidência dos EUA (derrotado a 5 de novembro desse ano pelo republicano Richard Nixon). 
Encenando o julgamento dos militantes presos na sequência de violentos confrontos com as forças policiais, Sorkin remete-nos para a dialéctica fundadora do imaginário democrático americano: ficamos a conhecer as profundas diferenças dos que foram a tribunal (incluindo Abbie Hoffmann, Tom Hayden ou David Dellinger), ao mesmo tempo que os identificamos como personagens de uma dramaturgia política que, em última instância, através dos seus desejos e traumas, configura um conceito de democracia. Ironicamente, Sorkin volta a afirmar-se no coração muito vivo das imagens: este filme (apenas) online pode valer-lhe, no mínimo, mais uma nomeação para os Oscars.