sexta-feira, agosto 09, 2019

Os dólares contra a cinefilia

Clark Gable e Vivien Leigh
Que significa dizer que um determinado filme acumulou centenas de milhões de dólares de receitas? Mais do que nunca, importa lembrar que o amor do cinema não é um assunto das secções de contabilidade — este texto foi publicado no Diário de Notícias (3 Agosto).

Ciclicamente, deparamos com notícias sobre o gigantismo das receitas de determinados filmes provenientes dos EUA. São sempre muitos milhões de dólares envolvendo os mais variados recordes...
Desconcertante é o facto de a esmagadora maioria dessas notícias omitir qualquer informação sobre o custo dos filmes e respectivas campanhas promocionais. Mesmo quando emanadas de secções especializadas em economia e finanças, raramente procuram contextualizar e, nessa medida, relativizar os valores em jogo. Não poucas vezes, tal omissão favorece a noção simplista, para não dizer demagógica, segundo a qual a importância cinematográfica de um determinado objecto decorre, automaticamente, da felicidade vivida pela contabilidade de quem o produziu.
Há dias, no site da CNN (na secção “Business”), deparei com um artigo a dar conta, precisamente, de alguns desses valores astronómicos. A saber: com O Rei Leão, os estúdios Disney têm um filme a ultrapassar, pela quarta vez em 2019, mil milhões de dólares de receitas globais (os outros são Vingadores: Endgame, Capitão Marvel e Aladdin). Quer isso dizer que a frequência das salas de cinema está num patamar de absoluta euforia?
Escusado será dizer que ninguém desmente as espantosas performances comerciais. Ainda menos se pretende atrair essa forma tradicional de estupidez segundo a qual os críticos de cinema estariam sempre dispostos a minimizar os filmes com invulgar impacto no mercado. Não creio que isso seja relevante para estas considerações, mas permito-me repetir que considero O Rei Leão uma belíssima e muito inteligente forma de recriar o título homónimo, também um enorme sucesso, lançado em 1994. O ponto é outro: fosse qualquer fosse o juízo de valor sobre o filme, a pertinência destas considerações seria idêntica.
Acontece que um milhão de dólares em 2019 não corresponde a um milhão de dólares de 1939. Mesmo quem não tenha qualquer especialização em temas económicos e financeiros (é o meu caso) compreenderá que o valor da moeda é relativo, quer dizer, decorre do contexto em que circula.
Citei, aliás, a data de 1939 porque é desse ano o filme americano que, de acordo com valores “ajustados à inflação”, continua a ser o mais rentável de sempre nas salas dos EUA. Chama-se E Tudo o Vento Levou e, contas redondas, teve receitas 4,7 vezes superiores às de O Rei Leão: 1.822 milhões contra 385 [Box Office Mojo]. Tendo em conta que a receita planetária de O Rei Leão é, no momento em que escrevo, de 1.023 milhões, isso significa que, apenas no interior dos EUA, E Tudo o Vento Levou conseguiu perto de 1,8 vezes mais.
O interesse destes números não envolve, insisto, qualquer interpretação temática ou leitura estética dos filmes. Trata-se, isso sim, de resistir a uma visão do fenómeno cinematográfico como um esquemático jogo de “deve” e “haver”, lembrando que as performances de muitos filmes mais antigos nos confrontam com um fenómeno tão básico quanto perturbante: há cada vez menos espectadores nas salas escuras. Pensar a cinefilia, aqui e agora, começa por aí.
Para nos ficarmos pelo Top 10 da citada lista dos mais rentáveis (“ajustados à inflação”), verificamos que o mais recente, Titanic, em 5º lugar, tem 22 anos; além disso, metade da lista é feita com títulos com mais de meio século, incluindo, em 10º lugar, um ainda mais antigo que E Tudo o Vento Levou, ou seja, Branca de Neve e os Sete Anões, de 1937 (com receitas 2,5 superiores às de O Rei Leão).
Tudo isto devia sensibilizar-nos para a grande encruzilhada económica, logo eminentemente cultural, em que vive o cinema no tempo do triunfo das plataformas digitais. O seu dramatismo envolve dois desafios: em primeiro lugar, manter a defesa do património de conhecimento e sociabilidade ligado às salas escuras; segundo, mostrar aos espectadores mais jovens que os amores de Clark Gable e Viven Leigh não foram encenados para serem vistos no ecrã dos seus telemóveis.