terça-feira, julho 09, 2019

Philip Roth no país de Trump

PHILIP ROTH
(1933 - 2018)
A obra de Philip Roth contém algumas das páginas mais admiráveis que se escreveram sobre a América das últimas décadas. Com ou sem o seu beneplácito, o cinema e a televisão não lhe são indiferentes — este texto foi publicado no Diário de Notícias (6 Julho).

Oito meses antes do seu falecimento, o escritor americano Philip Roth (1933-2018) publicou uma colectânea de memórias, entrevistas e ensaios, incluindo alguns inéditos, intitulada Why Write? (Library of America, 2017). São páginas fascinantes de alguém que manteve uma reflexão tão obstinada quanto exigente sobre as convulsões do seu país e, em particular, o lugar do escritor no interior dessas convulsões.
São dele estas palavras, proferidas numa sessão de celebração do seu 80º aniversário, a 19 de Março de 2013, no Museu de Newark: “(...) esta paixão pela especificidade das coisas, pela hipnótica materialidade do mundo em que vivemos, surge de modo fundamental na tarefa assumida por todos os romancistas americanos, desde Melville e a sua baleia ou Mark Twain e o seu rio: encontrar em palavras a descrição mais tocante e mais sugestiva para dar conta da mais remota das pequenas coisas que fazem da América o que ela é. Sem uma sólida representação da coisa — animada ou inanimada —, sem uma representação decisiva do real, não há nada” (traduzo da edição francesa, Pourquoi écrire?, Folio/Gallimard, 2019).
Roth não abdica do valor das palavras e, por maioria de razão, do labor da escrita. Há nele uma intransigência do dizer e do escrever cada vez mais importante face a uma vida política tecida de muitas acelerações, visuais e audiovisuais, em que a brevidade pueril do Twitter foi mesmo transformada pelo Presidente dos EUA em “gestão” quotidiana da esfera política. Em Janeiro de 2017, em declarações à revista The New Yorker, Roth resumiu a questão, definindo Donald Trump como um “artista da ilusão” (tradução branda de “con artist”).
Não deixa de ser curioso e, de alguma maneira, pedagógico observar que Roth não explora qualquer sugestão de paralelismo entre o seu trabalho — e, em boa verdade, de toda a geração de escritores do pós-guerra (Cormac McCarthty, Don DeLillo, Joyce Carol Oates, etc.) — e as aventuras narrativas que foram acontecendo no grande cinema americano, de John Ford a Clint Eastwood. Nem sequer gasta tempo a avaliar as adaptações cinematográficas dos seus romances, algumas delas, a meu ver, francamente brilhantes. Penso, por exemplo, e para ficarmos pelos títulos mais recentes, em A Humilhação (Barry Levinson, 2014), Indignação (James Schamus, 2016) e Uma História Americana (Ewan McGregor, 2016), este último baseado, como é óbvio, em Pastoral Americana (todos disponíveis em traduções portuguesas com chancela Dom Quixote).
Em boa verdade, faz sentido que Roth se distancie das imagens do cinema. A sua defesa de uma “sólida representação da coisa” enraíza-se num modo de ver, pensar e escrever que não necessita de qualquer caução corrente, até porque ele aponta o dedo a uma “cultura popular voraz e devoradora” que leva os jovens a “viverem segundo crenças para eles fabricadas pelos que não pensam” (palavras de uma entrevista de 2014).
O elogio do pensamento envolve, não a especulação abstracta, mas sim essa “representação decisiva do real” que pode até fundamentar-se em elementos inventados, como acontece no seu romance A Conspiração Contra a América (2004). Aí, Roth formula a hipótese de as presidenciais americanas de 1940 terem sido ganhas, não por Franklin D. Roosevelt, mas sim por Charles Lindbergh, o célebre aviador cujas ideias anti-semitas (reais) o levam a negociar (no livro) um pacto com Adolf Hitler. Ou como o próprio Roth referiu, em 2017, nas citadas declarações a The New Yorker: “É mais fácil entender a eleição de um Presidente Charles Lindbergh do que um verdadeiro Presidente como é Donald Trump.”
Eis uma lição pouco popular nos dias de hoje (porque, precisamente, contraria muitas crenças da cultura popular): a representação “espontânea” e “automática” da nossa existência, dominante no território das chamadas redes sociais, não pode ser confundida com uma visão transparente, muito menos redentora, da cidadania.
Registemos, enfim, que o autor e produtor David Simon (criador da série The Wire) está a trabalhar numa mini-série inspirada em A Conspiração Contra a América. E também que, numa entrevista ao New York Times, em Janeiro de 2018, Roth considerou que o assunto “está em boas mãos”.