domingo, julho 21, 2019

Jogo de espelhos no Teatro Aberto

GOLPADA
de Dea Loher

VERSÃO João Lourenço | Vera San Payo de Lemos
DRAMATURGIA Vera San Payo de Lemos
ENCENAÇÃO E CENÁRIO João Lourenço
DIRECÇÃO MUSICAL Renato Júnior
FIGURINOS Ana Paula Rocha
VÍDEO Nuno Neves
INTERPRETAÇÃO Ana Guiomar | Carlos Malvarez | Cristóvão Campos | Rui Melo | Tomás Alves
MÚSICOS Giordanno Barbieri | Mariana Rosa

De que falamos quando falamos de uma relação humana?
Em cena no Teatro Aberto (até 28 Julho), a peça Golpada, da alemã Dea Loher, integra, ecoa e transfigura esta interrogação, fazendo-a circular do mais estrito realismo social até terrenos de inusitada estranheza em que pressentimos o resto sedutor de alguma utopia.
A encenação de João Lourenço contempla tal multiplicidade, emprestando-lhe um palco de contínuas mutações em que qualquer evidência atrai os elementos que, de imediato, a podem colocar em causa (os cenários são também da responsabilidade de João Lourenço). A história dos dois gémeos que se envolvem numa "golpada" (o roubo de uma ourivesaria) possui, assim, o apelo tradicional de um típico enigma policial. Mas o seu desenvolvimento é tudo menos tradicional.
Dir-se-ia que assistimos a uma metódico jogo de espelhos. Exponenciando os elementos do texto, a encenação coloca os actores numa permanente corda bamba dramática, tão difícil de sustentar como envolvente nos seus efeitos informativos e emocionais. A saber: cada personagem é aquilo que é e também o narrador da sua própria condição. O que faz com que cada frase possa conter o discurso directo ("eu sou assim") e uma espécie de suplemento de angústia e ironia ("ele está a dizer que eu sou assim").
Daí a sensação de um baile de máscaras, afinal transparente e puramente humano, que o espectáculo vai adquirindo. Quando falamos de uma relação humana é, talvez, esse ziguezague que importa focar — entre a crueza do realismo e a insensatez dos desejos que atravessam tudo e todos.
Daí também que sejamos envolvidos num belo paradoxo: tudo acontece num espaço que denuncia o seu artificialismo e, ao mesmo tempo, através da vulnerabilidade dos corpos, sentimos tudo aquilo como uma crónica sobre muitas ilusões e impasses do nosso presente.
Sem esquecer a musicalidade interior desta Golpada. Desde logo, claro, porque os músicos/actores ocupam a cena, citando, ainda que com serena contenção, um certo espírito de cabaret. Depois porque, em última instância, assistimos ao desenvolvimento de um tema e variações. Tema: as singularidades do factor humano. Variações: as suas ancestrais tristezas e efémeras alegrias.