quarta-feira, maio 01, 2019

25 Abril — que imagens?

Mark Cohen [1974]
Em mais um aniversário do 25 de Abril, reencontrámos as suas imagens emblemáticas, porventura utópicas. Mas será que isso basta para conhecer o passado e viver o presente? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (25 Abril).

E eis que a rotina se repete: nos últimos dias fomos reencontrando no espaço mediático as mesmas imagens evocativas do dia 25 de Abril de 1974, o Largo do Carmo, as pessoas nas ruas de Lisboa, etc.
É uma rotina, de facto, que importa pensar para além da boa vontade democrática que a sustenta. Dito de outro modo: ser-nos-ia útil e, acredito, pedagógico compreender porque é que vivemos alegremente (?) este paradigma de pura repetição, ao mesmo tempo que sentimos todos os dias, sobretudo junto dos mais jovens, um mar imenso de ignorância sobre o que foi viver antes e “durante” o 25 de Abril.
Não tenho dúvidas que, em última instância, tal vazio cognitivo tem como principal responsável a minha geração. O que não exclui, antes intensifica, a dor de ver e ouvir alguns jovens a que, por uma razão ou por outra, é dado algum protagonismo mediático, falarem de “nós” (os que em 1974 tinham mais ou menos a idade que eles têm agora) como se tivéssemos vivido silenciosos e abúlicos, esmagados pelos dispositivos da ditadura.
Vieira da Silva [1974]
As direitas não querem falar disto. As esquerdas têm medo de falar a partir disto. Porque, de facto, não é fácil para ninguém (indivíduo ou grupo) reconhecer a existência dos mecanismos ditatoriais que definiram mais de quatro décadas da história portuguesa, ao mesmo tempo não menosprezando as singularidades das vidas vividas por cada um de nós (e não necessariamente por termos sido militantes de uma organização política ou partidária).
Reconheço-me nos discursos que recordam que a liberdade é um valor visceral herdado do 25 de Abril. Comovo-me, por vezes, através de alguns desses discursos. Mas devo relativizar a minha comoção e recordar a mim próprio (eventualmente, também a outros) que ela não é, nunca será, um factor determinante para a transmissão de alguma sensibilidade histórica.
Da omnipresença cultural do futebol ao triunfo obsceno da “reality TV”, a nossa sociedade mediática viveu, e continua a viver, tantas coisas que estão muito para além da energia libertadora do 25 de Abril. Temos mesmo muitos jovens que passaram a entender a sua vida social única e exclusivamente através das redes (que, como bem sabemos, se apropriaram desse adjectivo “social”, banalizando-o). Exaltando ou demonizando o 25 de Abril, não creio que as memórias preguiçosamente formatadas do que aconteceu há 45 anos bastem para lidarmos com os impasses, medos e perplexidades do presente.
Temos a liberdade que o 25 de Abril nos deu? Sim, não é isso que está em causa. Apesar disso (ou por causa disso mesmo), talvez necessitemos de dar alguma liberdade ao próprio 25 de Abril, libertando-nos a nós da noção pueril e voluntarista segundo a qual o seu “espírito” constitui uma espécie de chave utópica para as atribulações do nosso mal viver, aqui e agora. As imagens do Largo do Carmo não bastam. É preciso inventar outras narrativas para continuar a mostrá-las.