domingo, abril 14, 2019

A noite de 1913, por László Nemes

Juli Jakab
O cineasta húngaro László Nemes, autor de O Filho de Saul, revisita as vésperas da Primeira Guerra Mundial em Anoitecer: é, desde já, um dos grandes acontecimentos deste ano cinematográfico — este texto foi publicado no Diário de Notícias (11 Abril).

Cinema histórico? O lugar-comum manda dizer que quando a época é mais ou menos recuada e os actores usam guarda-roupa antigo, então um filme está a “fazer história”... É uma pobre visão cinéfila, viciada na ideia segundo a qual a história se faz por acumulação de adereços. Vale a pena pensar para além do lugar-comum, por exemplo através de Anoitecer, do húngaro László Nemes, por certo um dos dois ou três filmes realmente excepcionais que este ano já chegaram às salas portuguesas.
Não simplifiquemos, claro. Ao evocar a cidade de Budapeste, em 1913, Nemes integra muitos e decisivos elementos de “reconstituição”, essenciais na definição dos ambientes. Acontece que a cenografia não é um fim em si mesmo, até porque os seus elementos surgem sempre filtrados pelo olhar da protagonista, Írisz Leiter (Juli Jakab, incrível actriz), procurando um posto de trabalho na luxuosa loja de chapéus que, noutros tempos, pertenceu à sua família.
A intriga é labiríntica, tornando gratuita qualquer sinopse que se esgote nas peripécias mais ou menos surpreendentes que vão pontuando a acção, até porque Nemes explora diversas sugestões (deixadas em inquietante suspense) sobre as relações dos novos proprietários da loja com a corte do Império Austro-Húngaro. O que mais conta é a própria decomposição da realidade aos olhos de Írisz, de tal modo que Anoitecer se organiza como uma deambulação (apetece dizer: uma reportagem intimista) da redescoberta de Budapeste pela protagonista — o resultado tem tanto de realismo narrativo como de inquietação moral.
Como esclarece o final do filme, através de uma genial ideia de mise en scène, assistimos, assim, à acumulação de sinais premonitórios da eclosão da Primeira Guerra Mundial. Anoitecer consegue essa proeza rara que consiste em elaborar um retrato “psicológico” de uma mulher, ao mesmo tempo mostrando como as mais brutais convulsões colectivas se ramificam nos mais discretos detalhes do quotidiano.
Nemes, importa recordar, é autor de O Filho de Saul (2015), notável abordagem do interior do horror nazi, isto é, da rede de vida e morte num campo de concentração. Com Anoitecer, a sua segunda-metragem, o mínimo que se pode dizer é que Nemes se confirma como um dos mais ousados e inventivos criadores do actual cinema europeu.