Auto-retrato (1988) |
Fotografias? Sexo? Democracia? Ou ainda: de que falamos quando falamos de Mapplethorpe? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (29 Setembro).
As notícias em torno da exposição de Robert Mapplethorpe na Fundação de Serralves surgem contaminadas por um impulso moral que, nos nossos dias, se tornou uma espécie de vício mediático. Entenda-se: não discuto a importância dessas notícias e a pertinência do seu tratamento. E acrescento: também não pretendo, com estas breves linhas, contrapor qualquer visão redentora de tudo o que está em jogo.
Em boa verdade, a delicadeza do assunto leva-me a assumir uma distância. Não sei quem tem razão nem conheço todas as nuances da questão. Aceito, sem drama, que a todos os envolvidos assistem razões (no plural) que justificam atenção crítica e disponibilidade mental.
Apollo (1988) |
Seja como for, registo o citado impulso. A saber: há imagens que, desde que envolvam componentes sexuais mais ou menos evidentes, imediatamente suscitam alguma agitação social (incluindo a que se exprime, de forma brusca e irresponsável, nas chamadas redes sociais). Como se fosse necessário e, mais do que isso, compulsivo redefinir todas as nossas práticas democráticas “apenas” porque reconhecemos que estamos a ver algo que envolve elementos de natureza sexual.
Dizer que as fotografias de Mapplethorpe são cândidas e inócuas seria absurdo. O certo é que, extrapolando para o pólo oposto (que, aliás, neste caso, ninguém enunciou), não seria menos absurdo classificá-las como objectos grosseiros que devam ser evitados.
O que eu penso sobre os trabalhos fotográficos de Mapplethorpe é apenas um detalhe: parece-me ser um dos nomes fulcrais da arte americana da segunda metade do século XX, a par, por exemplo, de Patti Smith que sobre ele escreveu esse livro maravilhoso que é Apenas Miúdos (ed. Quetzal, 2011). O certo é que, socialmente, os ecos da actual situação “empurram-me” para voltar a lidar com as imagens de Mapplethorpe unicamente através da problematização da sua exposição pública e respectiva logística. E, para mim, como leitor/espectador dessas imagens, isso tende a menorizar a minha relação com elas. Atrevo-me a pensar que o mesmo se passará com a relação dos outros.
Volto, assim, a reconhecer que vivo num país em que Mapplethorpe provoca esta agitação pública, enquanto se passam anos e anos sem que quem quer que seja — a começar pelos elementos da classe política, direitas e esquerdas confundidas — pronuncie uma ténue palavra sobre a violência moral das representações quotidianas da sexualidade nos programas de “reality TV” (mais ou menos derivados do Big Brother).
Calla Lily (1984) |
Bem sei que relembrar isto tende a atrair um outro impulso (muito popular nos domínios sociais & virtuais), redutível a uma pergunta seca: “Queres, então, que se proíba a reality TV?” Permito-me, por isso, repetir: não se trata de clamar por qualquer lógica de interdição, mas de tentar lidar com o nosso silêncio social face a modos de representação das relações humanas que, entre outras coisas, reduzem a sexualidade a estúpidas performances genitais, nessa medida ridicularizando e, no limite, mascarando a riqueza, complexidade e beleza dos afectos.
Não me reconheço, por isso, nos rótulos que definem a importância de Mapplethorpe (ou, no pólo oposto, a sua falta de importância) através daquilo que seria a sua capacidade de “provocação”. Encaro mesmo essa palavra como um “gadget” pueril, já que a encontro regularmente aplicada, com o mesmo automatismo, a Mapplethorpe ou a uma vedeta de telenovelas que decide mostrar alguns centímetros de pele nua.
Do meu ponto de vista (certamente discutível, porque individual, não universal), considero que a energia afirmativa do trabalho fotográfico de Mapplethorpe não exclui, antes dá a ver, o medo que habita o nosso entendimento da sexualidade (leia-se: a própria vida sexual).
E talvez seja a partir daí que podemos reflectir sobre um dos enigmas do nosso liberalismo: face a Mapplethorpe, hesitamos, especulamos, discutimos exposição e ocultação; ao mesmo tempo, resignamo-nos com o facto de a “reality TV” e toda a sua desumanização (muito para além da sexualidade) se ter instalado na rotina do dia a dia. Esta nossa indiferença define muito do que somos, do que pensamos e, sobretudo, do que não queremos pensar.