quarta-feira, outubro 17, 2018

Hollywood, drama e melodrama

É a quarta vez que o cinema americano conta esta história: Assim Nasce uma Estrela prova que é possível recriar memórias, agora através de um par tão inesperado como brilhante: Bradley Cooper e Lady Gaga — este texto foi publicado no Diário de Notícias (11 Outubro).

Não é todos os dias que deparamos com um actor famoso, capaz de arriscar num filme que parece contrariar a sua mais forte imagem pública e, mais do que isso, assumindo (em estreia pessoal absoluta!) a realização desse filme.
Acontece agora com Bradley Cooper: através de Assim Nasce uma Estrela, ele consegue provar que sabe construir uma narrativa de serena consistência clássica. E como a sua personagem é uma vedeta musical, ficamos também a saber que ele sabe cantar. Mais do que isso: promovendo outra estreia, a de Lady Gaga como actriz, descobrimos também que a cantora de Born This Way ou Sexxx Dreams é uma talentosa intérprete dramática.
Não era simples, de facto, trabalhar no coração de Hollywood e contar a história de uma mulher que, como diz o título, se torna uma estrela, para tal contando com um veterano do espectáculo, fortemente dependente do álcool, que por ela se apaixona. Convenhamos que num panorama em que os super-heróis (Marvel & DC Comics) detêm todos os poderes de produção, recuperar esta história clássica estava longe de ser uma opção “natural”. Porque se trata, realmente, de uma recuperação: Assim Nasce uma Estrela retoma uma linha de argumento já experimentada em três épocas bem diferentes, em títulos produzidos em 1937, 1954 e 1976.
De que se trata, então? Um filme musical? Em boa verdade, não. Trata-se, isso sim, de um filme em que as canções surgem como elementos fundamentais da relação de conhecimento, trabalho e amor que se estabelece entre Jackson Maine (Cooper) e Ally (Gaga): ele, um cantor consagrado que vai escondendo do público o seu alcoolismo; ela, uma cantora e compositora que sobrevive como empregada de um restaurante, cantando por vezes num bar de travestis... Do seu encontro casual nasce um genuíno melodrama.
Melodrama? A palavra tornou-se suspeita para muitos espectadores, em grande parte por efeito de uma cultura audiovisual (de raiz televisiva e novelesca) que ignora a pluralidade histórica do cinema. De facto, na sua raiz mais pura, o melodrama é um género sem nada de pitoresco ou superficial: no seu seio deparamos com a complexidade das relações humanas e, mais do que isso, com a (im)possibilidade de cada ser cumprir aquilo que imagina ser o seu destino. Tudo isso, muitas vezes, precisamente, envolvido com as matérias musicais.
É o que aqui acontece. Cooper teve o cuidado de rodar as cenas com canções em ambientes tão realistas quanto possível (incluindo o festival inglês de Glastonbury e o Shrine Auditorium, em Los Angeles). Mais do que isso: o elaborado trabalho de montagem reforça o facto de tais canções não “interromperem” a história de Jackson e Ally, funcionando antes como momentos que reforçam, sublinham ou transfiguram os seus afectos e emoções — nesse aspecto, o tema Shallow surge exemplarmente encenado.
Que podemos esperar do impacto de Assim Nasce uma Estrela? Será que voltaremos a especular sobre o possível “retorno” do musical, mesmo não esquecendo que estamos antes perante um drama com música?
Não creio que essa seja a questão mais pertinente. Acima de tudo, a feliz aliança artística Bradley Cooper/Lady Gaga vem provar que é possível fazer filmes com raízes em modelos do imaginário popular, sem ceder às facilidades de uma produção instalada nas rotinas de géneros dependentes da banal ostentação de efeitos especiais. Nesta perspectiva, Assim Nasce uma Estrela é um digno herdeiro das memórias dos seus antepassados — trata-se, afinal, de contar uma “velha” história, repensando-a para o presente.