Foi uma estrela capaz de se expor, sem drama, com ironia, como anti-estrela: falecido no dia 6 de Setembro, contava 82 anos, Burt Reynolds fica como símbolo de uma idade do cinema em que os heróis digitais ainda não existiam — este texto foi publicado no Diário de Notícias (7 Setembro), com o título 'Elogio de Burt Reynolds'.
Não vale a pena cedermos a lirismos fáceis: numa filmografia de mais de centena e meia de títulos, como é a de Burt Reynolds (1936-2018), são muitos os títulos medíocres e irrelevantes que podemos encontrar. Perante a notícia do seu falecimento, evitemos, por isso, qualquer processo de “santificação” artística.
Acontece que o actor que, como todas as biografias recordam, foi também um símbolo triunfante de um certo imaginário sexual, participou em alguns filmes cuja valor histórico e estético é inestimável. Exemplo? O insólito Vendedor de Sonhos (1976), de Peter Bogdanovich, uma evocação amarga e doce dos pioneiros da indústria cinematográfica (cujo título original, Nickleodeon, remete, justamente para as primeiras salas escuras). Num certo sentido, Reynolds expunha-se aí num perverso espelho crítico: tradicionalmente menosprezado pelo jornalismo “sério”, ele interpretava um actor-vedeta com um ego capaz de destruir tudo à sua volta...
Surpreendentemente ou não, casos houve em que Reynolds se distinguiu por uma presença de invulgar subtileza emocional. Desde logo, nos seus títulos mais conhecidos, os admiráveis Fim de Semana Alucinante (1972), de John Boorman, O Jogador (1992), de Robert Altman, ou Jogos de Prazer (1997), de Paul Thomas Anderson — em todos eles, dir-se-ia que as suas personagens são clichés que ele vira do avesso, expondo as grandezas, misérias e contradições do factor humano.
Para a história, Jogos de Prazer ficará, por certo, como o centro irradiante da sua filmografia — até porque, convém lembrar, a sua interpretação de um realizador de filmes pornográficos lhe valeu um Globo de Ouro e uma nomeação para o Oscar de melhor actor secundário.
Mas vale a pena ver ou rever filmes como: 100 Armas ao Sol (1969), de Tom Gries, exemplo menor mas simbolicamente muito importante das transformações do “western” ao longo das décadas de 60/70; A Cidade dos Anjos (1975), de Robert Aldrich, belo e muito esquecido policial romântico [título original: Hustle] em que Reynolds contracenava com Catherine Deneuve (numa das suas poucas incursões na produção de Hollywood); ou ainda Amar de Novo (1979), de Alan J. Pakula, exemplo modelar de um melodrama, tradicional na sua organização, mas empenhado em compreender as novas relações homens/mulheres.
Reynolds começou na televisão, em finais dos anos 50, num momento de crise: a idade de ouro de Hollywood estava a chegar ao fim. O certo é que a sua capacidade de criar um “look”, não deixando de arriscar as mais inesperadas variações, lhe confere uma intocável aura de classicismo. Em dias de tão pobre cinefilia, há memórias que não nos podemos dar ao luxo de menosprezar.
>>> Memória de Burt Reynolds na CNN.
>>> Obituário em The Washington Post.