I. Cada vez que vejo Bruno de Carvalho na televisão, numa conferência de imprensa, não penso em futebol. Penso nas vozes, ora indignadas, ora chocarreiras, dos que dizem que os filmes de Manoel de Oliveira são feitos de longos planos fixos de 10 minutos (antes do digital, era a duração máxima de uma bobine de película...), alguns deles garantindo tal "verdade" ao mesmo tempo que proclamam que nunca viram tais filmes.
II. Onde estão essas vozes para comentar os longos planos fixos (10, 15, 20 minutos...) que são difundidos nos pequenos ecrãs quando Bruno de Carvalho dá uma conferência de imprensa? Aliás, ele está longe de ser o único protagonista de tal fenómeno. Qualquer personalidade do mundo do futebol parece ter o direito (automático, indiscutível, irrevogável) de ocupar esses ecrãs ao longo de infinitas horas, não poucas vezes interpretando os tais planos fixos.
III. Como espectador, confesso que já nem compreendo o que se diz e repete, repete, repete... como assunto futebolístico. Mas uma coisa é certa: se os ecrãs privilegiam tais matérias, isso decorre do facto de a elas atribuírem o valor de uma ideia de futebol.
IV. Que ideia é essa? Em boa verdade, é uma ideia cultural, poderosa como mais nenhuma outra. Ou não é verdade que, através do futebol, somos todos os dias confrontados com os méritos da vocação, os meandros da justiça e os valores da portugalidade?
V. No limite, o futebol tornou-se mesmo o único discurso cultural que tem à sua disposição todo o espaço audiovisual — entenda-se: social — para circular como princípio compulsivo da nossa identidade colectiva. O que, bem entendido, não nos garante que haja muitos novos espectadores, disponíveis e sem preconceitos, para ver, realmente ver, os filmes de Manoel de Oliveira.