terça-feira, maio 29, 2018

Nuri Bilge Ceylan em tom digital

Mundo digital? Imagens digitais? Para além dos chavões tecnológicos, que está a acontecer? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (27 Maio), com o título 'A natureza já não é natural'.

Para onde vão as imagens digitais? Ou talvez, melhor: para onde vão as imagens através do universo digital? Vivemos num mundo desconcertante, capaz de gerar celebrações mais ou menos agitadas em torno das novidades tecnológicas, mas pouco disponível para observar — e, já agora, pensar — o que realmente está a acontecer através dessas novidades.
Assim, por exemplo, o extraordinário filme do turco Nuri Bilge Ceylan, Le Poirier Sauvage/The Wild Pear Tree (à letra: “A Pereira Selvagem”), apresentado no recente Festival de Cannes. Ceylan é detentor de uma Palma de Ouro, ganha em 2014 com Sonho de Inverno. O certo é que o seu filme, último a ser exibido na secção competitiva, já não mereceu especial atenção da maioria dos órgãos de informação franceses, ocupados a especular sobre os candidatos à Palma deste ano (e não está em causa, como é óbvio, a alta qualidade de vários títulos a concurso, incluindo o vencedor, Shoplifters, do japonês Hiorokazu Kore-eda).
Acontece que Le Poirier Sauvage ilustra uma evolução tecnológica que está a transformar a vida das imagens, incluindo a percepção dos elementos naturais — a “pereira” do título é apenas um dos objectos de um filme em que as componentes paisagísticas, muito para além de qualquer decorativismo, funcionam como fundamentais factores dramáticos [trailer].


Para filmar a história de um jovem da Anatólia que, depois de concluído o seu curso, regressa às origens e traumas da sua família, Ceylan usou uma câmara digital que já não apresenta a definição mítica de 4K, mas vai mais além: trata-se da RED Weapon 6K, por certo um dos instrumentos de vanguarda da actual produção cinematográfica.
Evitemos favorecer a admiração beata da tecnologia que, como bem sabemos, se traduz muitas vezes na celebração inócua dos chamados “filmes de efeitos especiais” (leia-se: aventuras com super-heróis). Na verdade, as convulsões tecnológicas que marcam o cinema do presente — e, por certo, vão ajudar a configurar muito do seu futuro — são mesmo transversais, envolvendo tanto as mais recentes superproduções de Hollywood como os projectos mais singulares de pequenas cinematografias.
No caso de Ceylan, sendo ele também um notável paisagista (recorde-se a sua obra como fotógrafo), somos levados a questionar a tradicional naturalidade da... natureza. E compreendemos que a visão do mundo exterior pode mobilizar os mais intensos enigmas interiores. Aliás, a história da pintura não nos ensina outra coisa. Ou será que o grande J. M. W. Turner (1775-1851) era uma naturalista?
J. M. W. Turner
Snow Storm: Steam-Boat off a Harbour's Mouth
1842