Jessica Chastain |
Aaron Sorkin escreveu e realizou, Jessica Chastain interpreta: Jogo da Alta Roda é, entre nós, uma das primeiras grandes estreias de 2018 — este texto foi publicado no Diário de Notícias (4 Janeiro), com o título 'O jogo de poker, o dinheiro, a fama e a solidão de tudo isso'.
O ano cinematográfico começa com a revelação de um brilhante cineasta: Aaron Sorkin. A sua primeira realização, Jogo da Alta Roda, aborda uma personagem verídica: Molly Bloom, organizadora de jogos de poker em Los Angeles e Nova Iorque que, em 2013, na sequência de uma investigação do FBI, foi acusada de cumplicidade em esquemas de lavagem de dinheiro: ilibada da maior parte das acusações, seria condenada a um ano de pena suspensa, ao pagamento de uma multa de mil dólares e ao cumprimento de 200 horas de trabalho comunitário.
Em boa verdade, o nome de Sorkin não é uma surpresa. Afinal de contas, ele impôs-se como um dos mais brilhantes argumentistas de Hollywood, tendo obtido o Oscar de melhor argumento adaptado com A Rede Social (2010), a história do nascimento do Facebook realizada por David Fincher. Antes disso, escreveu, por exemplo, a peça A Few Good Men, por ele próprio adaptada para um filme de 1992, dirigido por Rob Reiner, com Tom Cruise e Jack Nicholson (entre nós chamado Uma Questão de Honra); foi também criador e principal argumentista da série televisiva Os Homens do Presidente (1999-2006), tendo assinado, mais recentemente, os argumentos de Moneyball – Jogo de Risco (Bennett Miller, 2011) e Steve Jobs (Danny Boyle, 2015).
Aaron Sorkin |
Estamos perante um criador moderno, mas de perfil clássico. Quando recebeu o seu Oscar, Sorkin fez mesmo questão de evocar a herança de Paddy Chayefsky (1923-1981), referência lendária da arte do argumento num tempo em que as interacções cinema/televisão se tornavam cada vez mais importantes — foi ele que escreveu Network – Escândalo na TV (Sidney Lumet, 1976), filme premonitório dos horrores do populismo televisivo.
A complexidade humana das personagens constitui a matéria primordial de Sorkin, de tal modo que não parece possível imaginar Jogo de Alta Roda sem a prodigiosa composição de Molly Bloom por Jessica Chastain. Vogamos para além da questão da “inocência” ou “culpa” da figura central, mesmo se tal questão funciona como motor da dimensão “policial” do argumento. Para Sorkin, trata-se de colocar em cena o misto de vulnerabilidade e força de uma personagem que falhou o seu sonho de ser esquiadora (sendo, por isso, essencial o valor simbólico da cena de abertura), de alguma maneira “compensando” através dos jogos de poker essa falha fundadora da sua identidade — o título original do filme é Molly’s Game, retomando o do livro que a própria Molly Bloom escreveu.
Ironia sugestiva, sem dúvida: Molly Bloom tem o mesmo nome da personagem feminina de Ulisses, de James Joyce, tecendo uma infindável teia de reconciliação com a realidade. Daí a comoção que Sorkin e Chastain colocam em cena: por um lado, Molly acede a um universo de gente famosa interessada nos seus jogos, incluindo Tobey Maguire, Leonardo DiCaprio e Ben Affleck (nenhum deles identificado no filme, embora a personagem interpretada por Michael Cera remeta, talvez, para a figura de Maguire); por outro lado, a sua vulnerabilidade passa pela possibilidade de refazer o seu primitivo laço com o pai (Kevin Costner, numa breve mas delicada composição, por certo das mais subtis de toda a sua carreira). Este é, afinal, um filme sobre o sucesso e a circulação do dinheiro, mas também sobre o preço incalculável da solidão.