[2018] |
O mercado cinematográfico transformou as sequelas numa zona "obrigatória" da sua dinâmica — este texto foi publicado no Diário de Notícias (31 Dez.), com o título 'Um ano em forma de sequela'.
Este é o tempo dos balanços. E também do seu sedutor complemento: as antevisões. Todos nos dedicamos a tais ginásticas apostadas em desenhar uma linha de continuidade entre o que foi e o que há-de ser. As antologias dedicadas ao futuro tornaram-se, aliás, uma componente viral do espaço informativo, dos jornais tradicionais às zonas mais remotas da blogosfera. Dir-se-ia que passámos a necessitar de indexar o que ainda não aconteceu, desse modo exorcizando os medos que experimentamos face ao que está a acontecer.
No espaço do cinema, encontrei no site de The Hollywood Reporter (29 Dez.) um sintoma claro: não exactamente um inventário de filmes a descobrir em 2018, mas uma lista das sequelas anunciadas para os próximos 12 meses — e são nada mais nada menos que 19!
Não faltam, claro, os super-heróis da Marvel, essa marca de “entertainment” que, na falta de ideias de cinema, se especializou no marketing da própria ideia de repetição. Encontramos, por exemplo, o belíssimo Paddington 2 (que conhecemos, na Europa, ainda antes do Natal) e duas propostas razoavelmente assustadoras: uma continuação de Mamma Mia! e o regresso de Mary Poppins, com Emily Blunt a tentar assumir a herança da personagem que, em 1965, valeu um Oscar a Julie Andrews.
Podemos até supor que as 19 sequelas se revelarão como grandes e surpreendentes momentos cinematográficos de 2018... Porque não? Em todo o caso, vale a pena perguntar o que é que tudo isto significa, não apenas na percepção pública da criação cinematográfica, mas na própria organização simbólica do mundo de imagens em que vivemos.
Este sistema de repetições — dominante na produção e no marketing do cinema ao longo deste século XXI — tende a enquistar o imaginário do consumo. Antes mesmo de entrarmos em eventuais (e salutares) discussões sobre os filmes “melhores” ou “piores”, esta é uma paisagem que condiciona o espectador comum a uma procura sem grande imaginação: trata-se apenas de saber quando surgirá aquele filme que “continua” algum outro...
Na prática, os filmes surgem desligados de qualquer existência genuinamente social. Exemplo? Não é verdade que 2017 foi um ano em que os dramas ligados às diferenças raciais marcaram muitas notícias sobre os EUA? Será que um filme como Detroit, de Kathryn Bigelow, foi devidamente encarado e pensado como um reflexo da complexidade de tal estado de coisas? Tenho sérias dúvidas. Fico, por isso, pelo esquematismo mais frágil: para mim, Detroit foi o melhor filme de 2017 — e não vai ter sequelas.