O mês de Fevereiro da Cinemateca é dominado por um magnífico ciclo dedicado a títulos emblemáticos do cinema americano das décadas de 1960/70 — este texto foi publicado no Diário de Notícias (28 Janeiro), com o título 'O “american way of life” revisto através de clássicos de Hollywood'.
E se o cinema americano dos anos 60/70 reflectisse os temas, ansiedades e medos do nosso presente? A pergunta está implícita no ciclo “American Way of Life: vidas em crise”, acontecimento central na programação do mês de Fevereiro na Cinemateca.
Repare-se no título de abertura, Iniciação Carnal (dia 1, 21h30). Realizado em 1971 por Mike Nichols, na altura já celebrizado com Quem Tem Medo de Virginia Woolf? (1966) e A Primeira Noite (1967), nele encontramos uma teia de personagens e relações sexuais que, nos dias que correm, talvez corresse o risco de ser condenada pelos militantes de uma qualquer “pureza” ditatorial. Através de um magnífico elenco — Jack Nicholson, Art Garfunkel, Candice Bergen, Ann-Margret —, Nichols colocava em cena as utopias e frustrações de pessoas realmente vivas, imprevisíveis e contraditórias, enfrentando as ilusões libertárias herdadas da atribulada década de 60.
Como se refere no texto de apresentação do ciclo, são 22 filmes em que encontramos “reflexos de vidas adultas que, espelhadas no cinema, mexiam com aquilo que tomávamos por verdadeiro na vida que vivíamos fora das salas”. A par da crise de valores existenciais que o título do evento refere, com os traumas da guerra do Vietname a contaminarem todo o tecido social americano, era também um tempo de dramáticas transformações cinematográficas: a galeria de autores que tinha protagonizado a idade de ouro de Hollywood estava a dar lugar aos que com eles tinham aprendido, respondendo também às perplexidades da sua geração.
Como se refere no texto de apresentação do ciclo, são 22 filmes em que encontramos “reflexos de vidas adultas que, espelhadas no cinema, mexiam com aquilo que tomávamos por verdadeiro na vida que vivíamos fora das salas”. A par da crise de valores existenciais que o título do evento refere, com os traumas da guerra do Vietname a contaminarem todo o tecido social americano, era também um tempo de dramáticas transformações cinematográficas: a galeria de autores que tinha protagonizado a idade de ouro de Hollywood estava a dar lugar aos que com eles tinham aprendido, respondendo também às perplexidades da sua geração.
Encontramos, por isso, os suspeitos do costume. Assim, a primeira fase de autores como Francis Ford Coppola e Martin Scorsese pode ser revisitada através de O Vigilante (1974) e Alice Já Não Mora Aqui (1975), respectivamente — o primeiro contando uma história dantesca sobre um técnico de som especialista em escutas (Gene Hackman); o segundo virando do avesso as regras clássicas do melodrama, centrando-se na personagem de uma mulher que tenta organizar o labirinto da sua existência (Ellen Burstyn).
São referências emblemáticas que há muito adquiriram o estatuto de clássicos. Mas há filmes muito menos conhecidos, mesmo quando trazem a assinatura de nomes como os citados. Ainda de Coppola, veja-se, por exemplo, The Rain People (1969), amargo e comovente melodrama com Shirley Knight e James Caan (lançado em Portugal com um título desastrado: Chove no Meu Coração). Ou descubra-se Looking for Mr. Goodbar/À Procura de um Homem (1977), de Richard Brooks, saga violenta de uma mulher num universo de homens, com Diane Keaton num dos melhores papéis da sua carreira, nos antípodas de Annie Hall, de Woody Allen, produzido no mesmo ano (também incluído no ciclo).
Estabelecendo ligações directas com a América dos nossos dias (e não só...), dois outros filmes são exemplos modelares de um cinema que mantinha as virtudes dos argumentos clássicos, abrindo-se para temas quentes do contexto em que forma gerados. O mais célebre é, por certo, Os Homens do Presidente (1976), de Alan J. Pakula, seguindo o trabalho de investigação de Bob Woodward (Robert Redford) e Carl Bernstein (Dustin Hoffman) em torno do caso Watergate — uma história que começa no momento em que termina a narrativa de The Post, o filme de Steven Spielberg que está nesta altura na corrida dos Oscars. O outro é Network (1976), de Sidney Lumet, com Peter Finch no papel de uma assombrada vedeta do pequeno ecrã, objecto absolutamente pioneiro na denúncia de um populismo televisivo que, quatro décadas depois, não desapareceu das nossas sociedades.
O ciclo relembra-nos uma verdade, de uma só vez histórica e artística, tantas vezes recalcada: há na história de Hollywood um cinema genuinamente social, politicamente interventivo, que está longe de poder ser reduzido às “margens” da produção independente. Dessa área, aliás, surge o admirável Wanda (1970), odisseia de uma mulher solitária escrita, dirigida e protagonizada pela actriz Barbara Loden (foi a sua única longa-metragem como realizadora). É um filme que podemos contrapor a Klute (1971), este gerado no sistema de estúdios, com Jane Fonda no centro de uma teia de subtil inquietação moral, relançando as componentes do clássico género “noir” — é mais uma realização de Pakula.
Há raridades como Pânico em Needle Park (1971), de Jerry Schatzberg, sobre os circuitos urbanos da droga, primeiro título importante da filmografia de Al Pacino, Inserts (1975), de John Byrum, e Hardcore (1979), de Paul Schrader, ambos retratando com metódica crueza os bastidores do cinema pornográfico. E há ainda esse filme coral que é Nashville (1975), de Robert Altman, mergulhando no mundo da música country para elaborar uma fascinante parábola sobre uma América perdida, porventura reencontrada, no turbilhão das suas crises [trailer].