domingo, setembro 10, 2017

Soderbergh ou o gosto da independência (1/2)

Steven Soderbergh está de volta com um filme que celebra a pura alegria do espectáculo, relançando o seu gosto da independência — este texto foi publicado no Diário de Notícias (7 Setembro), com o tíyulo 'Soderbergh celebra as aventuras dos "maus da fita"'.

Aventuras? Personagens que não sejam bonecos digitais, mas verdadeiros actores? Um roubo épico que se transforma num turbilhão de contagiante humor? Dir-se-ia que, nesse domínio, o Verão cinematográfico não tem sido muito compensador: a um “blockbuster” mais ou menos inter-galáctico segue-se outro, formatado e repetitivo, que mais parece um resto do primeiro... Tudo acompanhado por ruidosas campanhas televisivas e grande cartazes de rua. Ainda assim, nem tudo está perdido. O veterano Steven Soderbergh oferece-nos um espectáculo, limpo e inventivo, para salvar a estação: chama-se Logan Lucky. Apesar de ter recebido um título português de confusa sonoridade — Sorte à Logan —, ele aí está, celebrando o mais primitivo e contagiante gosto de artifício.
Quem viu Ocean’s Eleven (2001) e as suas sequelas, Ocean’s Twelve (2004) e Ocean’s Thirteen (2007), imediatamente reconhecerá o jogo proposto por Soderbergh: trata-se de contar a história de um golpe “impossível”. Logo no primeiro desses filmes, George Clooney e Brad Pitt roubavam, em simultâneo, três casinos de Las Vegas; agora, a quadrilha montada pelos irmãos Logan, interpretados por Channing Tatum e Adam Driver, aposta em roubar as receitas acumuladas durante uma das principais corridas de automóveis do circuito NASCAR (“A Sorte dos Irmãos Logan” teria sido um título francamente mais linear e apelativo).
As fontes de inspiração de Soderbergh têm menos a ver com a crueza trágica que desemboca em filmes como Cães Danados (1992), de Quentin Tarantino, e mais com um certa ironia, misto de distanciamento e elegância, que provém de produções dos anos 70 como O Grande Golpe (1972), de Peter Yates, ou A Golpada (1973), de George Roy Hill — ambos, curiosamente, com Robert Redford. Todas as peripécias, das mais inesperadas às mais surreais, decorrem da acção de um grupo, nem sempre muito brilhante na execução dos seus planos, mas movido por uma solidariedade sem mácula. Velho paradoxo da parábola policial: o espectador é levado a experimentar o prazer ambíguo de se sentir cúmplice dos “maus da fita”.


Tudo isto resulta também de um sentido de paródia e, sobretudo, auto-paródia que passa pelo trabalho dos actores — depois de Magic Mike (2012) e Efeitos Secundários (2013), Channing Tatum tornou-se um excelente emblema desse trabalho. Agora, o caso de Daniel Craig será o mais insólito e também o mais divertido. Para interpretar um especialista em arrombar cofres (que dá pelo nome eloquente de Joe Bang), o actual intérprete de James Bond surge com o cabelo muito curto, pintado de branco, distanciando-se de qualquer “imagem de marca”. Para acentuar a sua reconversão figurativa, no genérico Soderbergh identifica-o mesmo como o “estreante” Daniel Craig.
Enfim, convém não esquecer que, como sempre, Soderbergh é um metódico encenador das figuras femininas, sabendo apresentá-las contra os próprios clichés que, eventualmente, possam convocar. Observem-se as composições Riley Keough, a irmã “kitsch” do clã Logan, ou Hilary Swank, assumindo uma agente do FBI, cinzenta e implacável, ma non troppo. Isto sem esquecer a pequena Farrah Mackenzie, interpretando a filha de Channing Tatum: a abertura do filme, em que ela filosofa com o pai enquanto lhe vai passando as ferramentas para arranjar o carro, é uma cena de antologia.