domingo, setembro 10, 2017

A guerra do video-árbitro

RENÉ MAGRITTE
A Traição das Imagens
1928-29
A. Na agitação mediática (sobretudo televisiva) em torno do video-árbitro no futebol, um aspecto inevitavelmente curioso — e sintomático — é o seu anacronismo cultural. De facto, recuando um século, podemos observar como as mais diversas linguagens — pintura, fotografia, cinema — se confrontaram (e nos confrontaram) muito cedo com as ambivalências em que vive o mundo das imagens. Por alguma razão, o século XX é muitas vezes referido como o "século do cinema". Ou seja: o tempo em que aprendemos que as imagens não são uma reprodução automática e imaculada do mundo, muito menos uma repetição das suas matérias e significações, antes se apropriam de alguns sinais desse mundo para refazer a nossa percepção e pensamento, no limite, a nossa identidade.

B. Agora, vive-se em Portugal uma guerra quotidiana que, para além da maior ou menor elaboração e densidade dos discursos envolvidos (questão secundária, em boa verdade), tem como pano de fundo uma utopia pré-histórica — entenda-se: anterior à história das imagens e do seu papel nas relações humanas. A saber: as imagens seriam o veículo automático de uma verdade insofismável, por assim dizer, exterior às atribulações do próprio factor humano.

C. Como nada funciona assim — e não se pode dizer que, de Descartes a Freud, não tenhamos sido avisados —, assistimos a épicos combates diários em que muitos interlocutores parecem acreditar (com toda a sinceridade, não duvido) na possibilidade de acesso a um oráculo de imagens que devolveria, não apenas o futebol, mas todas as formas de existência humana, a uma transparência sem dúvidas nem silêncios. A tragédia de tudo isto está longe de ser uma questão futebolística — corremos o risco de nos transformarmos numa sociedade religiosa de adoradores do vazio.