Una - Negra Sedução é um significativo exemplo de um pequeno grande filme pouco ou nada defendido pelas lógicas dominantes do mercado — este texto foi publicado no Diário de Notícias (10 Setembro).
O mercado cinematográfico tem agravado um perverso contraste: de um lado estão os poucos filmes que desfrutam de grandes campanhas promocionais; do outro os muitos que, quase sem apoio publicitário (para mais ocupando um número reduzido de ecrãs), correm o risco de a sua existência nem sequer ser conhecida dos potenciais espectadores.
Como é óbvio, não há nenhuma relação, directa ou indirecta, entre as qualidades específicas de um filme e a sua promoção — nenhum filme é “mau” por ter grande cobertura publicitária, nenhum filme é “bom” por ser menosprezado pelos valores dominantes do marketing (ainda que isso não nos impeça de reconhecer que muitas linguagens desse marketing ignoram a pluralidade imensa, temática e estética, da produção cinematográfica contemporânea).
Benedict Andrews |
Assim, há objectos cinematográficos que, mesmo quando se distinguem por uma singular ousadia temática, não conseguem surgir nas linhas da frente do mercado. É verdade que um “tema” forte, seja ele qual for, não faz um filme. Mas não é menos verdade que não é todos os dias que podemos descobrir um filme como Una – Negra Sedução, de Benedict Andrews, colocando em cena a relação sexual de um homem de 40 anos com uma menina de 12.
A personagem que dá pelo nome de Una (Rooney Mara) é a mulher que, quinze anos depois, regressa para confrontar Ray (Ben Mendelsohn) com aquilo que aconteceu. É uma revisitação de um trauma profundo que envolve uma perturbação tanto maior quanto a dimensão monstruosa daquela relação não exclui uma interrogação visceral. A saber: como viver sem os gestos do amor?
Nenhum resumo meramente factual pode condensar a pudica vibração de um filme que, além do mais, encontra no seu elenco uma expressão exemplar — Rooney Mara tem mesmo uma composição digna de Oscar, sem esquecer a talentosa Ruby Stokes que assume a personagem de Una com 12 anos. O modo de “mostrar” aquilo que aconteceu surge transfigurado em algo mais radical: baseado na peça Blackbird, de David Harrower (também responsável pela adaptação ao cinema), este é um filme que sabe preservar as intensidades próprias da palavra, quer dizer, a dificuldade imensa de conseguir dizer aquilo que realmente foi vivido por Una e Ray.
Estamos, então, perante um exemplo modelar de um cinema sem complexos de ser “psicológico”? O adjectivo é discutível, mas toca num ponto essencial: as forças dominantes dos mercados interessam-se pouco pelos corpos e desejos de personagens humanas, favorecendo antes os heróis digitais de outras galáxias.