Sérgio Tréfaut filmou as memórias do Holocausto no seu novo filme, Treblinka — este texto foi publicado no Diário de Notícias (13 Junho), com o título 'O Holocausto e as palavras para o dizer'.
O novo filme de Sérgio Tréfaut, Treblinka, lida com as memórias do Holocausto a partir de um dispositivo que, desde o primeiro momento, estabelece um perturbante ziguezague entre passado e presente. Assim, por um lado, seguimos duas personagens, interpretadas por Isabel Ruth e Kirill Kashlikov, numa viagem de comboio através da Europa de Leste (Rússia, Ucrânia e Polónia), em direcção aos campos de extermínio concebidos pelos nazis — só em Treblinka foram mortas mais de 750.000 pessoas. Por outro lado, essa viagem é pontuada e, por assim dizer, conduzida pelas palavras de Chil Rajchman, um judeu polaco, dos poucos que sobreviveram aos horrores de Treblinka (as suas memórias, publicadas depois da sua morte, surgiram em 2009, em edição francesa, com o título Je Suis le Dernier Juif; a versão inglesa, Treblinka: A Survivor’s Memory tem data de 2011).
Objecto cinematográfico de infinita comoção, Treblinka talvez não possa deixar de evocar as experiências de Claude Lanzmann, em especial no monumental Shoah (1985). Trata-se, afinal, de resistir a qualquer dispositivo televisivo de “ilustração” da história colectiva, elegendo as palavras e a sua contundência como matéria primordial da memória. A verbalização dos crimes dos nazis — os “assassinos”, na metódica identificação de Rajchman — funciona, afinal, como um modelo estético que envolve uma postura política: dizer o inferno pode ser tão necessário, e também tão exigente, como mostrá-lo.
Em todo o caso, importa não diluir as singularidades do trabalho de Tréfaut na herança plural de Lanzmann. As presenças que habitam aquele comboio assombrado pela violência das memórias não são exactamente personagens. Ou melhor, apenas o são na medida em que a sua presença física vai desde a angustiada contemplação (Isabel Ruth é, como sempre, uma figura que conquista o olhar da câmara) até uma dimensão de fantasmas muito reais (observem-se os espantosos nus cujas imagens surgem “duplicadas”, como se nos faltassem os óculos para ver um filme a três dimensões).
Com intransigente rigor, Treblinka resolve, na trajectória de Tréfaut, as imprecisões e hesitações que limitavam filmes como Lisboetas (2004), A Cidade dos Mortos (2009) ou Viagem a Portugal (2011). É um documentário que sabe aceitar e, mais do que isso, integrar o desejo de ficção, na certeza de que a verdade mais radical da experiência humana não rejeita nenhum modelo do olhar cinematográfico. Em banal Verão de “blockbusters”, o grande cinema está aqui.