No passado dia 12, a Cinemateca exibiu o derradeiro filme mudo de Greta Garbo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (12 Julho), com o título 'Quando Hollywood obrigava Greta Garbo a esconder a sua voz'.
Os grandes títulos clássicos nem sempre são suficientes para compreendermos a dinâmica artística, industrial e comercial do cinema. Importa também prestarmos atenção aos filmes que, nas margens da história “oficial”, abrem para territórios menos conhecidos, por vezes fascinantes. Datado de 1929, O Beijo (título original: The Kiss), de Jacques Feyder, com Greta Garbo, é um desses filmes [Cinemateca].
Dir-se-á que um filme protagonizado por aquela que era uma das maiores estrelas do cinema mudo seria tudo menos um objecto marginal. Para mais com assinatura de um cineasta que, no interior da produção francesa e alemã (Feyder era belga, nascido em 1885), tinha já um prestígio consolidado através de títulos como A Segunda Mãe (1925), Carmen (1926) e Thérèse Raquin (1928), este há muito considerado perdido.
O certo é que O Beijo nasceu contra a corrente da própria evolução técnica do cinema. Basta lembrar alguns grandes sucessos de 1929 como Gold Diggers of Broadway e A Canção do Deserto, ambos dirigidos por Roy Del Ruth, ou ainda Parada do Amor, uma das comédias românticas que consagraram o par Maurice Chevalier/Jeanette MacDonald, com realização do mestre Ernst Lubitsch. Que liga estes títulos? São todos musicais, quer dizer, celebravam a novidade absoluta do som.
Acontece que a Metro Goldwyn Mayer, estúdio produtor de O Beijo, receou apostar naquilo que seria uma novidade absoluta. A saber: revelar Greta Garbo como um ser falante. É certo que filmes como O Demónio e a Carne (1926), de Clarence Brown, e Anna Karenina (1927), de Edmund Goulding, a tinham imposto como símbolo perfeito e universal do star system. Mas resistiria ela às singularidades do som? Receando que o sotaque sueco da actriz afastasse o público (que, de facto, nunca escutara a sua voz), a MGM convidou Feyder a ir até Hollywood para fazer aquilo que era, afinal, a sua “especialidade”: um melodrama sensual, apoiado numa sólida direcção de actores... mas mudo.
Um drama de tribunal
O Beijo surgiu, assim, nas salas de todo o mundo como um sólido objecto de produção, sustentado por um elenco recheado de talentos como Conrad Nagel, um dos mais populares actores da época, e Lew Ayres, praticamente um estreante que, apenas um ano mais tarde, ascenderia à condição de estrela através de A Oeste Nada de Novo, adaptação do romance de Erich Maria Remarque dirigida por Lewis Milestone.
O filme apoia-se num sólida teia narrativa arquitectada por Hanns Kräly, colaborador regular de Lubitsch. Garbo interpreta uma mulher cujo desencanto conjugal a leva a aproximar-se do filho (Ayres) do sócio do marido, ao mesmo tempo que mantém uma relação secreta, revelada logo na cena de abertura, com um jovem advogado (Nagel). Um momento de perversa ambiguidade — que justifica o título O Beijo — vai gerar um drama que, a certa altura, se transfere para o cenário de um tribunal.
Com alguma ironia, podemos dizer que a realização de Feyder já pouco deve às regras mais comuns do cinema mudo (mesmo se o filme contém ainda os tradicionais inter-títulos). Explorando uma certa dilatação do tempo das acções, favorecendo a delicada contemplação de gestos e olhares, ele sabe explorar, muito em particular, a alternância entre as imagens mais gerais e os grandes planos dos rostos.
Garbo passou assim, com distinção, o derradeiro teste do cinema mudo — O Beijo seria mesmo o último filme mudo produzido pela MGM. No ano seguinte, o estúdio apostou, finalmente, na voz da sua estrela, com o drama Anna Christie, dirigido por Clarence Brown. E aplicou uma célebre e triunfante frase promocional: “Garbo fala!”