quinta-feira, julho 27, 2017

O Dr. Estranhoamor no tempo de Trump

Peter Sellers, Dr. Strangelove
Vale a pena pensar os filmes a partir do contexto em que foram feitos, pensando também como falam para o nosso presente — este texto foi publicado no Diário de Notícias (23 Julho).

No nosso dia a dia mediático, não poucas vezes, somos levados a reduzir o exercício do poder político a um conjunto de peripécias anedóticas protagonizadas pelos grandes líderes. Observe-se o caso óbvio de Donald Trump: gastamos (ou somos levados a gastar) mais tempo com as suas diatribes públicas do que a pensar as questões radicais que a sua performance arrasta. Por exemplo: que acontece na dinâmica dos próprios valores democráticos quando elegemos (os americanos, neste caso, mas a questão é universal) uma personalidade com o perfil de Trump?
Há muitas formas de linguagem que nos podem ajudar a lidar com tal conjuntura. Do meu ponto de vista, o cinema continua a ser uma das mais ricas — e também das menos socialmente aplicadas. Nada disto decorre de qualquer pretensão de “intelectualizar” a relação com os filmes. Trata-se tão só de discutir a visão mercantilista e lúdica (de um ludismo mercantil, convém esclarecer) que passou a dominar o mercado audiovisual, bloqueando o simples prazer de mantermos uma relação viva com a infinita pluralidade do cinema e da sua história de mais de um século.
Donald Trump
Dr. Estranhoamor (1964), o lendário Dr. Strangelove, de Stanley Kubrick, pode ser um magnífico exemplo de tais virtudes cinematográficas — e tanto mais quanto acaba de reaparecer numa edição em Blu-ray (integra, aliás, um notável conjunto de uma dezena de clássicos lançado pela distribuidora Pris). Produzido em contexto de Guerra Fria, trata-se de uma sátira delirante, contundente e intemporal, sobre a utilização bélica da energia nuclear (no original, o título completo é “Dr. Estranhoamor ou: Como Eu Aprendi a Deixar de me Preocupar e a Adorar a Bomba”).
Para a história, o filme ficou também como uma extraordinária proeza de Peter Sellers, interpretando três personagens emblemáticas: Lionel Mandrake, um exuberante oficial britânico, Merkin Muffley, o hesitante Presidente dos EUA, e a figura central, Dr. Strangelove, ex-nazi e entusiasta da utilização da bomba atómica.
Entenda-se: a actualidade do filme não decorre de qualquer “comparação” maniqueísta, por exemplo fazendo equivaler a loucura atómica de Strangelove e os desastres democráticos de Trump. O que Kubrick coloca em cena é algo que, infelizmente, permanece actualíssimo. A saber: a diluição dos valores da democracia, a par da concentração de um imenso poder político (e militar!) nas mãos de alguns poucos cidadãos. Na sua vertigem burlesca, Dr. Estranhoamor é também um objecto de perturbante realismo [trailer].