Que aconteceu entre o pioneirismo de Carolina Beatriz Ângelo [foto em cima], a primeira mulher portuguesa a exercer o direito de voto, em 1911, e a euforia de 2017 que faz com que Cristina Ferreira surja na capa da sua revista, com Rita Pereira, proclamando Girl Power?
Não se trata de uma pergunta para incluir nas curiosidades mais ou menos cor-de-rosa desta imprensa (?) que domina o nosso espaço mediático. Que é como quem diz: as vestes escuras e austeras de uma das mulheres não a excluem da dinâmica de pensamento do nosso presente, do mesmo modo que a pose de Verão das outras duas não lhes confere nenhuma verdade automática e universal.
O que é interessante observar é o modo como a diferença feminina evoluiu das convulsões dos combates sociais e políticos de há mais de um século para a ligeireza de um discurso que, na melhor das hipóteses, corresponderá a uma caricatura não muito feliz da energia das Spice Girls, assumindo, justamente, o mesmo lema.
O que é interessante observar é o modo como a diferença feminina evoluiu das convulsões dos combates sociais e políticos de há mais de um século para a ligeireza de um discurso que, na melhor das hipóteses, corresponderá a uma caricatura não muito feliz da energia das Spice Girls, assumindo, justamente, o mesmo lema.
Acontece que este aparato de "ligeireza" e "felicidade" envolve uma formatação das palavras e do discurso escrito que passou a deter um imenso poder normativo — e normativo, em última instância, na percepção das identidades femininas. Que propõem, então, Cristina Ferreira e Rita Pereira?
Primeiro, ficamos a saber que a capa "exalta o poder feminino de duas amigas de longa data". Onde está esse poder? No riso de catálogo de guarda-roupa? Na "ousadia" desse mesmo guarda-roupa? E que não se estranhe esta última pergunta. Neste tipo de imprensa (e não só), desde que uma mulher exponha alguns centímetros de pele nua, tanto basta para que seja rotulada de "ousada" — não interessa o que faz, diz ou pensa; uma promessa de nudez faz dela uma "revolucionária".
Ao que parece, trata-se de uma comunidade fechada na defesa dos seus peculiares valores. Porquê? Porque "Cristina Ferreira e Rita Pereira contam os seus segredos, revelam como mantêm a boa forma física e principalmente o que as torna felizes."
Poderá pensar-se que se anuncia, assim, uma intervenção política ou filosófica de grande... ousadia. Nada mais político, aliás, do que repensar a felicidade — há mesmo quem nos tenha alertado para os imbróglios da felicidade, garantido-nos que o único problema "verdadeiramente sério" da filosofia é o "suicídio".
Mas não, estamos apenas perante duas mulheres que se auto-definem a partir da "descontracção" e do "sorriso". Assim mesmo: esta será "uma conversa descontraída entre duas mulheres que sorriem ainda mais… no verão" — ou como a meteorologia passou a ser vendida como um estado de alma.
Mas não, estamos apenas perante duas mulheres que se auto-definem a partir da "descontracção" e do "sorriso". Assim mesmo: esta será "uma conversa descontraída entre duas mulheres que sorriem ainda mais… no verão" — ou como a meteorologia passou a ser vendida como um estado de alma.
Curiosa visão do poder das mulheres. Segundo o seu programa público, quanto mais inócuas forem as palavras, mais "feminina" será a sua verdade. No limite, a aplicação da expressão Girl Power é feita a partir do pressuposto pueril segundo o qual o uso da língua inglesa pode garantir um suplemento de autoridade. Express yourself.