O Exorcista está de volta, agora como série televisiva — este texto foi publicado no Diário de Notícias (17 Junho), com o título 'Mais de quatro décadas depois, O Exorcista renasce na televisão'.
Para o melhor e para o pior, cinema e televisão têm-se dedicado nas últimas décadas a copiar os seus próprios sucessos. Sequelas, remakes, continuações mais ou menos (in)fiéis aos originais passaram a fazer parte da rotina audiovisual. Ainda assim, uma versão televisiva do filme O Exorcista (1973), de William Friedkin, não estaria nas previsões de muita gente. Mas ela aí está: O Exorcista, série criada pelo argumentista Jeremy Slater, estreou-se nos EUA em Setembro de 2016, chegando agora ao público português — no canal Fox [desde segunda-feira, dia 19, 22h15].
A nova série, curiosamente, não se apresenta como uma recriação do filme de Friedkin, mas sim do romance de William Peter Blatty (1928-2017) que esteve na sua origem — a versão cinematográfica era, aliás, escrita pelo próprio Blatty, tendo-lhe valido um Oscar de melhor argumento adaptado. Em qualquer caso, encontramos também uma dupla de sacerdotes que, de uma maneira ou de outra, vão ser compelidos a enfrentar as manifestações do Mal, lidando com personagens jovens “mobilizadas” para os mais diabólicos desígnios. Um dos sacerdotes, o padre Marcus Keane (Ben Daniels) é um veterano dos exorcismos, tendo tentado resgatar um rapaz de uma família de um bairro pobre no México; o outro, Tomas Ortega (Alfonso Herrera), de ascendência mexicana, mais novo e menos experiente, começa a ter sonhos em que vislumbra as práticas exorcistas do próprio Marcus.
Tomas decide procurar Marcus e dar-lhe conta das suas inquietações. A acção dos dois sacerdotes irá cruzar-se através de uma família de Chicago, precisamente da paróquia de Tomas. No primeiro episódio, a mãe dessa família — interpretada pelo nome mais sonante do elenco: Geena Davis (Oscar de melhor actriz secundária em O Turista Acidental, 1988) — vai revelar-se como peça fundamental desta intriga de medos e fantasmas. Vivendo com o marido (Alan Ruck) e duas filhas (Brianne Howey e Hannah Kasulka), ela dá conta a Tomas dos barulhos que ouve através das paredes, garantindo-lhe que há “alguma coisa” no interior da sua casa. Mais do que isso: preocupada com o facto de a filha mais velha (Howey) passar a maior parte do tempo fechada no seu quarto, receia que ela possa estar a ser instrumentalizada por forças desconhecidas...
Demónios e metáforas
Para além das cenas de suspense e dos ziguezagues mais ou menos insólitos da história (e logo no primeiro, há um bem inesperado...), pode dizer-se que a série propõe o mesmo tipo de aproximação “sociológica” que já estava presente no filme. À distância de mais de 40 anos, reencontramos o confronto entre uma visão racional do quotidiano e os sinais que, através de uma crescente perturbação, vão sugerindo que há forças malignas que os seres humanos não controlam — quando Tomas tenta acalmar a mãe, lembrando-lhe que os “demónios são metáforas”, ela insiste que aquilo que está a acontecer em sua casa não tem nada de metafórico.
Estreado nos EUA na quadra natalícia de 1973 (chegaria a Portugal cerca de um ano mais tarde), o filme de Friedkin reflectia, indirectamente, as convulsões de uma sociedade assombrada pelos traumas da guerra do Vietname (que terminaria em meados de 1975). Cerca de um ano antes, surgira Os Visitantes, realizado pelo veterano Elia Kazan, precisamente um dos primeiros filmes a reflectir esses traumas.
O impacto de O Exorcista, de Friedkin, foi de tal ordem que, ainda hoje, na tabela ajustada à inflação dos filmes mais rentáveis de sempre no mercado americano surge em nono lugar. Para se ter uma ideia da dimensão de tal sucesso, lembremos que o recordista de bilheteira do ano passado, Rogue One: Uma História de Star Wars, ocupa o 57º lugar da mesma tabela.
O filme gerou uma franchise, prolongada por O Exorcista II: o Herege (1977), de John Boorman, e O Exorcista III (1990), com William Peter Blatty a assumir a realização para adaptar o seu livro Legião (sequela do primeiro). Os títulos seguintes — Exorcista: o Princípio (2004) e Dominion: a Prequela de o Exorcista (2005) — ficaram marcados por muitos problemas de produção e, em boa verdade, nem sequer foram assumidos pelos respectivos realizadores, Renny Harlin e Paul Schrader.
Dir-se-ia que a nova série televisiva surge como espelho perverso de uma América atravessada por uma crise de identidade que contamina a sua cena política, ao mesmo tempo que questiona alguns dos seus valores tradicionais. Se é metáfora ou não, eis o que está aberto à discussão — o certo é que, no passado mês de Maio, a Fox encomendou uma segunda temporada de O Exorcista.