Jean-Luc Godard faz imagens "insignificantes" e é suspeito de altivez; Cristiano Ronaldo faz (ou parece fazer) o mesmo e é um herói — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 Junho).
Em 2014, quando estreou o filme Adeus à Linguagem, de Jean-Luc Godard, poucos se mostraram entusiasmados com a sua experimentação do 3D, desafiando os olhares humanos que circulavam pelas suas imagens. Falo de uma referência que a maior parte dos leitores ignora (teve 538 espectadores na semana de estreia); por isso, não alimento ilusões em relação ao eco destas minhas palavras, mesmo se é verdade que Adeus à Linguagem me parece um objecto tão importante para a história do cinema como Les Demoiselles d’Avignon (Picasso, 1907) para a pintura ou Ulisses (Joyce, 1922) para a literatura.
Lembro-me, em qualquer caso, de ouvir algumas observações jocosas sobre o “ridículo” que seria o facto de, em vários momentos do filme, Godard acompanhar o seu cão, Roxy, deambulando pelas paisagens da zona da Suíça em que habitam. Godard seria “culpado” de fabricar imagens irrelevantes, desprovidas de qualquer significação pertinente. Daí a pergunta castigadora: “Mas o que é que aquilo significa?”
Há que reconhecer que um cidadão do mundo, de nome Cristiano Ronaldo, resolveu esta questão a seu favor — e com um impacto popular que, hélas!, Godard nunca conseguiu. Assim, Ronaldo colocou no Instagram uma foto sua, a olhar para a câmara, indicador direito hierático em frente ao rosto, no gesto de mandar calar alguém (“Por vezes, a melhor resposta é estar calado”, diz a legenda). Pois bem: “O que é que aquilo significa?”.
Poderíamos esperar que, tal como Godard, Ronaldo fosse invectivado por colocar em circulação imagens que “ninguém” pode decifrar... Mas não: o planeta inteiro (e, provavelmente, algumas galáxias cujas mensagens ainda não chegaram ao sistema solar) mostrou-se deslumbrado com o mistério indecifrável de tão esplendorosa imagem. Que é que ele quer significar?
Reparem: não escrevo contra o legítimo direito de Ronaldo, ou seja quem for, partilhar as suas imagens com o planeta Terra. Se o senhor Mark Zuckerberg conseguiu convencer mais de mil milhões de pessoas a tratar a intimidade como um gadget partilhável, quem sou eu para me armar em moralista? Acontece que esta exaltação em torno do mais leve espirro de Ronaldo (peço que me concedam este direito a uma metáfora pouco inspirada...) reflecte uma curiosa lei mediática, afinal, perversamente, também sobre os direitos de imagem: um cão à deriva nas maravilhas naturais da Suíça não passa de um peão semiologicamente suspeito de um artista solitário; um futebolista a mandar calar-nos é uma celebração global. Vivemos assim.