quarta-feira, abril 12, 2017

Rihanna no país de Hitchcock

Rihanna, 2017
Na série Bates Motel, Rihanna retoma a personagem que, em Psico (1960), pertenceu a Janet Leigh: é o ziguezague das memórias cinéfilas através da televisão — este texto foi publicado no Diário de Notícias (9 Abril), com o título 'Aventuras de Rihanna no país de Hitchcock'.

Aviso prévio: se o leitor acompanha a série Bates Motel (TV Séries), é provável que as linhas que se seguem contenham elementos que o levem a antecipar informações (os célebres “spoilers”) que, naturalmente, quererá descobrir através dos respectivos episódios...
Pensemos, então, numa mulher, interpretada por Rihanna, que roubou uma grande quantia de dinheiro, a conduzir um automóvel, numa noite de chuva — o ambiente é de puro assombramento. Ao ver o néon de uma instalação hoteleira (de nome “Bates Motel”, precisamente), decide pernoitar no local... E surge a inevitável pergunta de algibeira: pensamos em quê, ou em quem?
Qualquer cinéfilo que venere o nome de Alfred Hitchcock evocará, de imediato, a viagem trágica de Marion Crane, interpretada por Janet Leigh, no clássico Psico (1960), uma das obras-primas do mestre do suspense. Pois bem, Marion está de volta em Bates Motel, a série centrada na figura do seu proprietário, Norman Bates, assumido pelo genial Anthony Perkins no filme de Hitchcock, agora interpretado por Freddie Highmore.
Janet Leigh, 1960
Depois de contar a história de Bates e sua mãe (Vera Farmiga), a série, na sua quinta e derradeira temporada, está a desembocar nos acontecimentos narrados no filme. Será que a Marion de Rihanna vai ter o mesmo destino que a personagem de Janet Leigh, morrendo nesse duche trágico que é, por certo, uma das cenas mais famosas de toda a história do cinema? Digamos que o espectador pode ter razões para duvidar...
Em todo o caso, para além da maior ou menor “coincidência” das aventuras das duas personagens no país de Hitchcock, vale a pena sublinhar a dimensão mais insólita da série. Chamemos-lhe a “infantilização” das memórias de Psico. Desde logo, através do intérprete de Norman: Perkins tinha 28 anos quando surgiu no filme de Hitchcock, tendo Highmore iniciado a rodagem de Bates Motel com apenas 20 (tínhamo-lo visto, ainda criança, em 2005, a protagonizar Charlie e a Fábrica de Chocolate, de Tim Burton). Depois, a integração de Rihanna no elenco empresta à narrativa um simbolismo “juvenil” que decorre menos da sua idade (fez 29 anos em Fevereiro, Janet Leigh tinha 33) e mais, como é óbvio, da condição de estrela pop global.
Talvez seja essa uma das leis dominantes do entertainment dos nosso dias: mimar a memória dos clássicos, esvaziando a sua carga trágica e reescrevendo-os como jogos de “juventude”. Daí que a série se apresente como um teatro sangrento de marionetas humanas, enquanto Hitchcock, menos tolerante, nos convocava para o medo mais visceral.