Para o realizador Barry Jenkins, Moonlight envolveu um desafio cinematográfico e existencial — este texto foi publicado no Diário de Notícias (2 Fevereiro), com o título 'Também há corpos azuis'.
Não conheço a peça de Tarell Alvin McCraney em que o filme Moonlight, de Barry Jenkins, se baseia. Em qualquer caso, vendo o filme, é óbvio que Jenkins conservou uma sugestão — à luz da lua, os corpos negros parecem azuis — enunciada no seu título original: In Moonlight Black Boys Look Blue. Derivação poética? Sim, sem dúvida, mas apenas se não esquecermos que o artifício da poesia envolve sempre uma essencial dimensão política.
No contexto dos Oscars, tantas vezes contaminado por algum primarismo mediático (será que La La Land é o único filme que justifica atenção?...), importa relembrar a herança deixada pelas discussões dos últimos dois anos sobre o grau de visibilidade dos afro-americanos, em particular nas categorias de representação — recorde-se que o filme que despoletou tal debate foi Selma: a Marcha da Liberdade (2014), sobre a luta de Martin Luther King pela igualdade de direito de voto.
A causa é nobre: por um lado, não escamotear o lugar dos negros na história dos EUA; por outro lado, celebrar a sua essencial presença nas dinâmicas criativas de Hollywood. O que ficou quase sempre por dizer é que, provavelmente, a secundarização de Selma nos Oscars terá resultado, não de qualquer discriminação, mas do facto de a maioria dos votantes considerar que se trata de uma abordagem historicamente convencional, parasitada pelos lugares-comuns de muitos telefilmes.
Moonlight é o oposto de Selma. A saber: um filme capaz de lidar com a identidade afro-americana muito para além de qualquer cliché, acima de tudo valorizando até às derradeiras consequências a irredutibilidade (dramática e sexual) de qualquer personagem. Arrisco, por isso, uma frase panfletária: no balanço de 2016, Moonlight é um dos dois ou três momentos mais altos da produção americana.