domingo, fevereiro 12, 2017

Cinema português:
uma carta ao governo

SAÍDA DO PESSOAL OPERÁRIO DA FÁBRICA CONFIANÇA (1896)
de Aurélio Paz dos Reis
Foi divulgada hoje à noite uma carta aberta ao governo, assinada por dezenas de profissionais e várias entidades ligadas ao cinema português (com o apoio de profissionais e entidades estrangeiras) — em causa as regras que definem a formação dos júris do Instituto de Cinema e Audiovisual de Portugal. Eis o respectivo texto.

Em Portugal, um colectivo de realizadores, produtores, actores, técnicos e distribuidores, festivais de cinema e associações profissionais escreveu uma carta aberta ao governo português e recebeu apoio da comunidade internacional do sector:

CARTA DE PROTESTO E SOLIDARIEDADE [ * ]

Há várias décadas que Portugal é tido como um caso à parte no contexto da produção cinematográfica mundial. Tratando-se de um país pequeno, sem mercado interno para sustentar uma indústria, é raro o ano em que surja nas salas de cinema mais do que uma dúzia de longas-metragens nacionais. Mas, apesar disso, é elevadíssima a percentagem desses filmes com presença em festivais internacionais. A partir da década de 80, e de um modo sistemático, o cinema português tem sido objeto de mostras e homenagens; tal como têm sido organizadas retrospetivas de vários cineastas portugueses – uns em atividade (alguns deles assinam este texto), outros infelizmente já desaparecidos (João César Monteiro, Paulo Rocha, Fernando Lopes, António Reis, José Álvaro Morais, António Campos ou, claro, Manoel de Oliveira). O “milagre” desta desproporcional visibilidade internacional no contexto de tão escassa produção - atravessando décadas distintas e diferentes gerações de autores - deve-se certamente ao mérito dos realizadores, dos técnicos, dos atores e dos produtores de cinema em Portugal. Mas o mérito também residiu numa política cultural que fomentou a produção de um cinema marcado por uma forte singularidade das suas propostas, bem como estabeleceu as bases para lhe garantir liberdade criativa. Assim se consolidou a imagem do cinema feito em Portugal.

A política cultural que permitiu este cinema e que abriu as portas à diversidade, assentou em Leis do Cinema e num Instituto Público, o ICA, que as aplicou, organizando de forma continuada concursos públicos para o apoio financeiro à produção de filmes, com regras de participação transparentes e critérios de avaliação compatíveis com uma política promovida pelo Ministério da Cultura e com júris escolhidos pelo Instituto cujo perfil é definido por lei como “personalidades com reconhecido mérito cultural e idoneidade”. Assim, foram chamados à função de júri cineastas e técnicos de cinema, bem como críticos, artistas plásticos, escritores, arquitetos, músicos, programadores culturais ou professores universitários para aprovarem os projetos de filmes.

A partir de 2013, um decreto-lei regulamentador da Lei do Cinema e uma nova direção do Instituto de Cinema e Audiovisual de Portugal (ICA), mostrando-se alérgicos à responsabilidade e desconhecedores do papel regulador que o ICA deve ter no processo, transferiram a tarefa da escolha dos júris para um comité onde estão representados todos os interessados no resultado dos concursos de apoio: associações profissionais, representantes das televisões, representantes dos operadores de audiovisual, entre outros. Passou, então, a ser este comité corporativo a indicar ao ICA os nomes dos júris que avaliam os projetos de filmes, num claro conluio de interesses em muitos dos casos entre nomeados e quem nomeia.

O resultado não se fez esperar: os requisitos exigidos no regulamento sobre o perfil dos júris, “personalidades de reconhecido mérito cultural”, deixaram manifestamente de fazer sentido tendo em conta os atuais jurados. Nos últimos anos contam-se entre os decisores dos projetos de cinema, administradores de bancos com ligação ao cinema ou diretores de marketing de operadoras de telecomunicações...

O atual governo, refém da pressão exercida por operadores da televisão por cabo, prepara-se agora para homologar um novo decreto-lei que perpetua e agrava este procedimento. Um conjunto muito representativo de realizadores e produtores portugueses manifestou-se contra este sistema promíscuo e viciado, assegurando à tutela que se recusam terminantemente a fazer parte do processo de nomeações: não querem ter influência na nomeação de júris nem aceitam que outros interessados nos resultados dos concursos possam participar do processo. Acreditam que a transparência só pode ser assegurada se a nomeação de júris regressar à exclusiva competência do ICA. De uma vez por todas, querem uma direção do ICA capaz de assumir as suas responsabilidades, estando consciente do seu duplo papel de executor da política cultural para o cinema e de regulador desta atividade.

Os subscritores desta carta de protesto querem recordar ao Estado que o Cinema Português não é uma questão exclusivamente nacional. Por isso, prestam a sua solidariedade com os realizadores e produtores portugueses que se têm oposto a este processo e manifestam o seu repúdio, caso o decreto-lei seja homologado.
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[ * ] Na lista de assinaturas do documento começa por surgir uma dúzia de entidades que inclui empresas produtoras e difusoras do cinema português, festivais e sindicatos. Seguem-se os nomes de mais de uma centena de profissionais (realizadores, produtores, actores, argumentistas, técnicos, etc.), directa ou indirectamente ligados à existência material do cinema português, e ainda uma lista de mais de 400 signatários internacionais (realizadores, produtores, programadores, etc.). Para conhecimento de todas as assinaturas, consulte-se o documento no site do DocLisboa.