quarta-feira, janeiro 11, 2017

De que falamos quando falamos dos mortos?

Harriet Andersson
LÁGRIMAS E SUSPIROS (1972), de Ingmar Bergman
Como lidamos com os nossos mortos? Que cultura jornalística e mediática rege a nossa relação com o silêncio da morte? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (2 Janeiro), com o título 'Quando encontramos o silêncio'.

Ao longo de 2016, a sucessão de mortes de grandes figuras do espectáculo foi alimentando uma pobre religião mediática. David Bowie e Prince, Leonard Cohen e George Michael surgiram envolvidos num determinismo simbólico (em grande parte induzido pela agitação “social” da Internet) desembocando numa pueril perplexidade: que sentido devemos atribuir à avalanche de notícias fúnebres? Entretanto, a morte, em dois dias consecutivos, de Carrie Fisher e sua mãe Debbie Reynolds, agravou as invocações mais ou menos metafísicas — era preciso que as notícias “explicassem” a proximidade de tantos obituários.
Há em tudo isto uma formatação emocional que importa identificar. Será que só sabemos lidar com as imagens dos mortos se as integrarmos numa narrativa que confira algum sentido ao seu desaparecimento? E se a morte for essa “coisa” estúpida que esvazia todos os sentidos, expondo a nossa primordial vulnerabilidade?
Carrie Fisher e Debbie Reynolds
Poderíamos, aliás, perguntar por que passou a haver uma hierarquia informativa dos que morrem. Não para discutir prioridades ou privilégios. Bem pelo contrário. Acontece que 2016 foi também o ano em que, entre muitas outras pessoas excepcionais, faleceram Jacques Rivette, Harper Lee, Umberto Eco, Michael Cimino, Abbas Kiarostami, Edward Albee, Michèle Morgan... Será que o luto pela sua perda é dispensável? Ou só lhes reconheceríamos importância se as televisões gastassem horas a dizer tudo e coisa nenhuma sobre os seus talentos?
A ironia insinua-se em tudo isto, mas importa resistir-lhe. No fundo, deparamos com a fragilidade de uma cultura saturada de imagens, cada vez mais carecida de dimensão humana: duas mortes próximas no tempo são forçadas a “conter” um enigma que, supostamente, o jornalismo irá revelar ao mundo?
As perguntas multiplicam-se: de onde provém o impulso mediático que faz com que sejamos compelidos a canonizar a existência de quem morreu? O branqueamento das tensões e conflitos inerentes a qualquer biografia é uma boa maneira de administrar a herança de alguém que já não está connosco?
A nossa cultura virtual sente-se atraída por tudo o que é catastrófico (observe-se a proliferação de filmes com super-heróis sempre em missão para nos salvar do apocalipse), mas não sabe como lidar com o silêncio da morte — esse silêncio que nos deixa sem palavras nem imagens. Penso no filme Lágrimas e Suspiros (1972), de Ingmar Bergman, e na sua história de alguém que vai morrer. Há nele uma pulsão de vida que nos pode ajudar a sermos dignos daqueles que nos faltam.