sexta-feira, janeiro 06, 2017

2016, um livro — "Born to Run"


N. G.: Com uma linguagem simples, direta, é um relato vibrante, cheio de pequenos detalhes e de grandes olhares, através do qual acompanhamos a evolução do músico que começou por reconhecer que não tinha particulares talentos enquanto voz em frente a um microfone, mas que se tornou num dos maiores singer songwriters da história da música popular e um performer de exceção que, ainda hoje, não olha para o relógio na hora de pensar quando deve sair do palco e dar o concerto por terminado. E descobrimos a formação gradual de uma consciência política que (felizmente) sabe dar voz ao que pensa e defende, em várias ocasiões deixando bem claras notas críticas às figuras no poder e aos candidatos aos cargos políticos. O ícone de classe trabalhadora made in New Jersey que as canções construíram tem, aqui, nestas páginas, um retrato nítido e frontal da consciência social e política que o define. De resto, das lendas e mitologias, só a uma não adere: a de se lhe chamar “The Boss”. Não é coisa que ele faça. Mesmo deixando claras as lutas (pessoais, políticas e profissionais), há em Born To Run uma mão cheia de histórias mais ligeiras, que fazem desta leitura uma entremeada afinal sempre surpreendente e saborosa de acontecimentos. Com uma escrita que não coloca filtro no entusiasmo recorda, por exemplo, o momento da descoberta visual dos Beatles. Já os tinha escutado na rádio. Mas foi ao ver a capa do mítico Meet the Beatles, que se fez luz. Olhou aquelas caras sobre um fundo negro. Era, como ele mesmo descreve, um monte Rushmore do rock’n’roll. E o que foi o que mais o impressionou? Algo que a rádio não lhe tinha mostrado: os cabelos!

J. L.: Desde os tempos heróicos do nomadismo de The Wild, the Innocent and the E Street Shuffle (1973) até à avaliação das feridas do 11 de Setembro em The Rising (2002), sabemos que Bruce Springsteen sempre foi um contador de histórias da América profunda, com conotações mais ou menos pessoais. Com a sua autobiografia, ele arrisca prescindir dos véus da ficção, expondo-se através de um despojamento que visa sempre, em última instância, a celebração vital do rock. Escusado será dizer que a escolha do título Born to Run está longe de ser uma mera citação da canção e do álbum de 1975: trata-se de assumir até às últimas consequências o desafio de dizer "eu" — dizer e escrever.