1. No começo do mês de Dezembro do ano da graça de 2016, a cerca de três semanas do Natal, esta é, seguramente, a imagem mais presente no nosso quotidiano.
2. Eventualmente, o espectador de rua (que todos somos) poderá ser impelido a ler ou reler A Obra de Arte na Era de Sua Reprodutibilidade Técnica, de Walter Benjamin, tentando compreender como a questão da repetição potencialmente infinita das imagens transcendeu o espaço tradicional daquilo a que aprendemos a chamar “arte” — a ocupação selvagem do quotidiano, no limite, por uma única imagem, passou a ser a primeira e decisiva arma bélica da publicidade e dessa sua derivação corporativa que é o marketing.
3. Outra hipótese, por certo menos exigente, e incomparavelmente mais deprimente, será procurar a explicação do que está a acontecer na tristeza jornalística da imprensa “cor-de-rosa” — corremos o risco de ficar a saber que a protagonista do anúncio “esbanja ousadia”.
4. Claro que não é simples pensar tudo isto. Quando a “ousadia” se mede pelos centímetros de pele nua (seja de quem for, mas é quase sempre uma mulher), o mínimo que se pode dizer é que a cultura dominante instrumentalizou a singularidade do corpo, reduzindo-o a “gadget” de uma visão do mundo em que a nudez foi estupidamente eleita como signo máximo (porventura único) de “ousadia”, “sensualidade” e, last but not least, de uma compulsiva identidade feminina.
5. Uma coisa é certa: para a população portuguesa em geral, o Pai Natal de 2016 confunde-se com a pose incauta, ma non troppo, de Irina Shayk — sendo a condição de "ex-namorada de Cristiano Ronaldo" uma espécie de título honoris causa que, para alguns discursos jornalísticos do nosso tempo, envolve a pertença a uma incontestada e incontestável aristocracia mediática.
6. Como falar desta conjuntura escapando à ditadura comunicacional segundo a qual a nudez existe como revelador de uma transcendência que, em última instância, visa a anulação simbólica de qualquer discurso que tente pensar a pluralidade dos seus contextos? Ou ainda: como combater a ignorância histórica e estética segundo a qual o nu é uma forma de representação sempre igual, sempre "ousada", condenando-nos a uma "sensualidade" unilateral e unívoca?
7. Escusado será dizer que importa resistir ao moralismo reinante segundo o qual é obrigatório distinguir os nus “puros” dos nus “impuros”. Neste caso, optando pelo mais prudente minimalismo filosófico, trata-se, isso sim, de reconhecer que todos aqueles que exaltarem a pureza bíblica da quadra — em particular tentando transmitir os respectivos valores às suas crianças — depararão com um problema suplementar, patrocinado pelos intelectuais do marketing. A saber: como enquadrar a exuberância visual da lingerie nos valores ancestrais do nosso comovente espírito natalício?