Ver a guerra pelo ponto de vista de quem a perdeu. Não é um espaço comum, mas também não se trata de nada inédito. Afinal, e focando a II Guerra Mundial (que é do que falamos) já Rosselini o tinha mostrado, ainda a quente, em Alemanha, Ano Zero (1948). Mais recentemente, em A Queda (2004), de O. Hirschbiegel, acompanhámos o desmoronar do regime a partir do bunker de Hilter, no coração de Berlim. Em Lore (2012), um outro título absolutamente referencial, a realizadora Cate Shortland saía contudo de Berlim e entrava na Alemanha profunda para, através de cinco irmãos (que supomos filhos de uma alta patente das SS com papel no Holocausto), que ficaram sem casa, sem comida, sem conforto, sem poder, nos dar um retrato do que é um país derrotado. A Primavera de Christine, da austríaca Mirjam Unger, acrescenta agora um outro ponto a este conto.
A ação situa-se, também em 1945, mas agora na Áustria, território anexado pela Alemanha nazi bem antes da eclosão da guerra. Estamos por isso em terreno que corresponde ao grande reich anterior a 1939, mas num tempo em que a guerra está perdida, os cidadãos têm as suas casas demolidas pelos raides aéreos, maldizem a figura de Hitler e os feitos do regime e, com medo, esperam a chegada dos russos. Tal como em Lore, a realizadora escolhe alguém que não tem ainda idade para compreender as complexidades da guerra para nos colocar naquele tempo e lugar. E, tal como os irmãos que corriam pela floresta negra em busca de novo porto seguro, também aqui a pequena Christine irá compreender melhor os jogos em questão, mostrando contudo uma abordagem diferente aos conceitos de amigo e inimigo. Não os procura na identidade que a farda ou berço traduzem. Mas no modo como com ela se relacionam.
Baseado num romance autobiográfico de Christine Nöstlinger, o filme toma como centro para a acção uma villa aristocrática onde as diferenças de classe entre patrões e empregados se dissipam perante a luta pela sobrevivência. A mesma villa na qual um comandante do exército russo escolhe para instalar o seu quartel provisório. Tal como em Lore, o filme não procura traçar uma parábola coletiva. Evita o uns contra os outros, não funciona no preto e branco dos bons e dos maus. Porque há cinzentos em todo o lado. Desenvolve sobretudo as personagens, a sua relação entre si, o processo de progressiva tomada de consciência daqueles que ali moram sobre o que se passou antes e, depois, quem são os que entretanto chegam. O ponto de vista da pequena protagonista habita o tutano da história. Mas não vamos reduzir A Primavera de Christine a uma visão inocente de uma guerra, do seu desfecho e das trocas de poder que o balanço de vencedores e vencidos comporta. Está tudo lá. E para olhos de crescido ver.