Ewan McGregor, Jennifer Connelly e Dakota Fanning |
Um belo acontecimento de cinema: o romance Pastoral Americana, de Philip Roth, revisto e reinventado por Ewan McGregor — este texto foi publicado no Diário de Notícias (17 Novembro), com o título 'Filmando a herança do Sonho Americano'.
De que falamos quando falamos de classicismo? Simplifiquemos, isto é, não esqueçamos o essencial. Falamos de um cinema que não se ilude com as suas próprias proezas técnicas e que, obviamente não as renegando, se mantém atento à fascinante pluralidade do factor humano. Falamos de filmes que sabem respeitar a complexidade de cada personagem sem ocultar o movimento histórico, social e simbólico a que a sua história pertence. Falamos, por exemplo, de Uma História Americana.
É pena que o título português não se limite a traduzir o original, chamando-lhe Pastoral Americana, afinal o título do romance de Philip Roth em que se baseia (editado em Portugal pela Dom Quixote). Dir-se-á que é um pormenor... Em qualquer caso, está longe de ser secundário. É através dele que se sugere a dimensão quase religiosa da saga da família Levov, na América de finais da década de 1960. O pai, conhecido na sua comunidade como “Swede” (“Sueco”, por causa do seu cabelo invulgarmente louro) dirige uma próspera fábrica de luvas; a mãe, Dawn, foi consagrada na juventude como “miss” de um concurso de beleza; enfim, Merry, a filha, é a herdeira do ideal de felicidade que, socialmente, os pais representam. Em resumo, os Levov parecem destinados a existir como uma encarnação perfeita do “Sonho Americano”.
Há, no entanto, um primeiro desvio a tão cândida utopia: Merry gagueja de forma compulsiva, a ponto de as suas dificuldades de articulação serem vistas (e até diagnosticadas) como sinal de uma desordem subconsciente que funciona no sentido de contrariar o peso excessivo da “pureza” que o casal Levov está, por assim dizer, condenado a viver. As coisas tornam-se inevitavelmente menos transparentes e mais perturbantes quando Merry, já adolescente, envolvida em muitos protestos de cariz político (em particular contra as políticas de Lyndon Johnson no Vietname), surge como suspeita de um atentado à bomba...
O passado e o presente
Uma História Americana pertence a um modelo nobre de Hollywood, com raízes nas obras de grandes autores dramáticos e melodramáticos como Elia Kazan ou Otto Preminger, infelizmente pouco praticado na actual produção — Clint Eastwood é, claramente, uma das excepções. A sua matéria nuclear será a amarga distância que as personagens descobrem (e nós com elas) entre um certo imaginário familiar, poético e redentor, e as convulsões muito concretas de um quotidiano em que todos os valores tradicionais estão a ser postos à prova.
Deparamos, assim, com a presença transversal de temas emblemáticos dos anos 60, desde os protestos contra a guerra do Vietname até às dramáticas derivas de uma intensa contra-cultura, para utilizarmos o termo consagrado por Theodore Roszak (no seu livro The Making of a Counter Culture, editado em 1969). Merry é a ambígua ilustração de tal dinâmica, com tanto de heroína como de vítima, arrastando os pais para terrenos de intimidade e introspecção que, em boa verdade, desmentem o seu próprio projecto de vida.
Para explicar as peculiares emoções de Uma História Americana, talvez seja fundamental lembrar que se trata de um filme dirigido por um actor. É mesmo uma estreia: Ewan McGregor assina, aqui, a sua primeira realização, ancorando o seu trabalho na rigorosa gestão de um elenco dominado por ele próprio, no papel do pai, e Jennifer Connelly, compondo a figura da mãe como um fantasma das tradicionais matriarcas do cinema clássico americano (John Ford é o contraponto que vem à memória), vivendo a tragédia da filha como uma viagem entre a lucidez e a loucura. Isto sem esquecer, precisamente, a singular personagem da filha, interpretada por Dakota Fanning (e, nas cenas da infância e da adolescência, por Ocean James e Hannah Nordberg, respectivamente).
Será preciso acrescentar que este é também um filme de inusitada actualidade política? Não “pró” ou anti” Trump — evitemos os simplismos da moda. Nele deparamos com uma América de identidade dolorosamente esfrangalhada, com as suas gerações separadas de modo radical. São temas e sinais com 50 anos, mas interiores ao nosso presente.