Peter Handke esteve em Portugal para apresentar uma cópia restaurada do seu filme A Mulher Canhota — este texto foi publicado no Diário de Notícias (6 Novembro), com o título 'Os lugares tranquilos de Peter Handke'.
A presença em Portugal do austríaco Peter Handke, um dos maiores escritores contemporâneos, não encontrou grande eco nas “redes sociais”. Faz sentido que assim seja: para além das honrosas excepções, tais “redes” existem dominadas pelo ruído mediático, não por qualquer disponibilidade para olhar o mundo e escutar as suas diferenças.
Aliás, Handke pode ser definido como um autor da escuta e do silêncio, da recusa do ruído e da paciente atenção às mais secretas vibrações das palavras. Lembram-se de As Asas do Desejo (1987), de Wim Wenders? Foi ele o argumentista, tendo escrito, por exemplo, o texto que lança essa fábula sobre as convulsões históricas da cidade de Berlim, protagonizada pelos anjos que povoam o seu céu: “Quando a criança era uma criança / caminhava balouçando os braços / querendo que o ribeiro fosse um rio / o rio uma corrente / e esta poça fosse o mar” (com as minhas desculpas por esta tradução do alemão “filtrada” por uma versão inglesa).
Handke veio ao Lisbon & Estoril Film Festival para apresentar a cópia restaurada de A Mulher Canhota (1978), por ele realizado a partir do seu romance homónimo. Protagonizado por Edith Clever — a extraordinária actriz alemã que já surgira em A Marquesa d’O (1976), de Eric Rohmer, e viria a rodar Parsifal (1982), sob a direcção de Hans-Jürgen Syberberg —, trata-se de um filme de admirável delicadeza sobre uma solidão feminina que resiste a qualquer estereótipo “social”, feminino ou feminista. Quase quarenta anos depois, A Mulher Canhota ilustra mesmo uma visão dos seres humanos, homens ou mulheres, capaz de contrariar os esquemas da “psicologia” corrente, presente em poderosos discursos sociais como são as abordagens grosseiras da imprensa cor-de-rosa ou dos livros de auto-ajuda.
Podemos reencontrar tal visão em dois breves e belíssimos livros de Handke, publicados em francês há cerca de cinco anos: La Grande Chute e Essai sur le Lieu Tranquille (ambos com chancela da Gallimard). A meio caminho entre a reflexão na primeira pessoa e a deambulação romanesca, são livros que perseguem essa utopia do “lugar tranquilo”, citado no título do segundo. Como defini-lo? Não apenas a partir da suspensão do ruído social. Trata-se de lidar com as imagens “desencarnadas” e a aventura de alguém — um narrador, o escritor — que procura, precisamente, um lugar que seja seu e lhe permita dizer “eu”, isto é, pertencer a uma história.
Provavelmente, o mistério, carregado de sedução, da escrita de Handke provém do facto de o seu ponto de fuga ser sempre a infância. Não a infância pitoresca e consumista dos media (que vai reaparecer na publicidade de Natal), antes um tempo em que o absoluto fez sentido. Como nestas outras palavras de As Asas do Desejo: “Quando a criança era uma criança / não sabia que era uma criança / tudo tinha uma alma / e todas as almas eram uma só”.