A odisseia do Airbus que aterrou no rio Hudson, em 2009, surge agora transfigurada num espantoso filme de Clint Eastwood, com Tom Hanks no papel central — este texto foi publicado no Diário de Notícias (7 Setembro), com o título 'Clint Eastwood, um herói, o seu avião e a aterragem dele'.
Por vezes, o cinema consegue a proeza de intensificar o que já sabíamos, ou julgávamos saber, através do jornalismo. Um filme pode mesmo funcionar como uma espécie de viagem jornalística através da mais radical intimidade dos seres humanos. O novo filme realizado por Clint Eastwood, Milagre no Rio Hudson, é um desses objectos mágicos, afinal apaixonado pela objectividade.
E o que já sabíamos foi, de facto, assunto de primeira página em todo o mundo. No dia 15 de Janeiro de 2009, o voo 1549, da US Airways, partiu do aeroporto de LaGuardia, na zona norte de Nova Iorque. Poucos minutos depois, um bando de pássaros inutilizou os dois motores do avião, um Airbus A320, obrigando o comandante Chesley Sullenberger a uma decisão drástica: tentar voltar atrás, correndo o risco de despenhar-se numa zona habitacional, ou dirigir-se para... as águas do rio Hudson?
Sullenberger e o seu primeiro oficial, Jeffery Skiles, conseguiram a proeza de manter o avião em equilíbrio, “aterrando” na água, para mais num dia de agrestes temperaturas negativas. A impressionante serenidade do comandante e da tripulação, rapidamente auxiliados por diversas embarcações do porto de Nova Iorque, garantiu o salvamento de todas as 155 pessoas a bordo do Airbus.
A imagem do avião com dois escorregas insufláveis junto às asas tornou-se um símbolo universal da operação (servindo agora de inspiração a um dos cartazes do filme). Sullenberger foi rapidamente mediatizado através do diminutivo usado pelos seus companheiros, “Sully” (é esse, aliás, o título original do filme), mas até que ponto essa proximidade gerada pelos meios de informação correspondia a um genuíno conhecimento da personagem?
É dessa dúvida que parte o filme de Eastwood, aliás inspirando-se no livro que Sullenberger escreveu com Jeffrey Zaslow, agora editado entre nós, também com o título Milagre no Rio Hudson (ed. Marcador). É uma dúvida tanto mais pertinente quanto Sully viveu uma segunda odisseia, por certo menos épica, mas profundamente perturbante: a comissão de inquérito nomeada para estudar o acidente começou por considerar que ele não garantiu a segurança possível — regressando a LaGuardia ou a outro aeroporto igualmente próximo —, argumentando através de diversas simulações de computador que, com e sem intervenientes humanos, consideraram a manobra o Airbus um erro evitável.
Eastwood consegue a proeza de fazer um filme de imaculado classicismo, ao mesmo tempo colocando-se entre a vanguarda tecnológica. Clássico, Milagre no Rio Hudson é-o pela visão moral do herói solitário — Sully é aquele que não abdica da necessidade de considerar o factor humano como elemento insubstituível da percepção do mundo. Ao mesmo tempo, numa época em que se confunde o trabalho de efeitos especiais com a invenção de monstros digitais, este é um exemplo raro de integração desses efeitos para encenar algo tão inusitado como um avião a “aterrar” num rio...
Escusado será lembrar que a sua sensibilidade artística está indissociavelmente ligada à decomposição dos valores do “western” clássico, precisamente o género que, até finais da década de 50, mais e melhor condensou uma visão mítica e redentora da construção da própria América. Aliás, Eastwood ficou como um símbolo central dessa decomposição através dos filmes que, entre 1964 e 1966, rodou em Itália sob a direcção de Sergio Leone (Por um Punhado de Dólares, Por Mais Alguns Dólares e O Bom, o Mau e o Vilão).
Chesley Sullenberger, o Sully filmado por Eastwood, pode ser visto como um herdeiro tardio, deliciosamente anacrónico, de um ideal de heroísmo (entenda-se: de dedicação à vida social) que até o próprio “western” foi perdendo. E não haveria muitos actores como Tom Hanks capazes de representar a comovente vulnerabilidade de um ser humano compelido a viver uma situação para a qual, nem mesmo do ponto de vista meramente técnico, foi (ou podia ter sido) preparado. Podemos apostar que a personagem de Sully valerá a Hanks, no mínimo, mais uma nomeação para o Oscar de melhor actor.