Oliver Stone encena a saga de Edward Snowden num filme de fascinante complexidade — este texto foi publicado no Diário de Notícias (19 Setembro), com o título 'Como “purificar” as relações entre política e tecnologia?'.
Para o melhor ou para o pior, Edward Snowden inscreveu o seu nome na história política do século XXI. Ao divulgar, em 2013, dados de segurança interna dos EUA e, em particular, dos mecanismos de vigilância da National Security Agency (NSA), o ex-funcionário da CIA transformou-se em pólo necessariamente polémico de uma questão do nosso mundo global: o cruzamento do exercício do poder com a integração das novas tecnologias de detecção de mensagens. O filme de Oliver Stone, Snowden, aponta ao núcleo crítico de tal discussão.
Em boa verdade, mesmo que o discurso de Stone siga noutra direcção, o seu filme está longe de ser um mero panfleto. Há nele uma respiração dramática que evoca os modelos clássicos do cinema liberal de Hollywood. Isto sem esquecer que a palavra (“liberal”) corre sempre o risco de suscitar muitos equívocos, quanto mais não seja porque o que está em jogo não é uma simples posição política, muito menos partidária. É, isso sim, a tensão que se estabelece entre a acção de um indivíduo e o contexto institucional que o enquadra.
Nesta perspectiva, Snowden pode ser considerado um descendente directo de “thrillers” das décadas de 60/70, assinados por cineastas como John Frankenheimer, Alan J. Pakula ou Sydney Pollack (recorde-se o caso exemplar de Três Dias do Condor, de Pollack, em que Robert Redford interpretava um funcionário da CIA perseguido pela própria instituição).
Por mais desconcertante que isso possa parecer, este retrato de Edward Snowden acaba por ser uma variação sobre o mesmo paradoxo existencial que Stone já encenara em títulos como JFK (1991) ou Nixon (1995). No primeiro caso, da investigação sobre o assassinato de John F. Kennedy emergia a figura do procurador Jim Garrison (Kevin Costner), protagonizando um processo que se vai diluindo na encruzilhada de muitos testemunhos e outros tantos silêncios; no segundo, a revelação dos abusos de poder de Richard Nixon (Anthony Hopkins) acabava por lhe conferir uma perturbante emoção trágica.
Cada espectador reagirá de modo diferente (e com toda a legitimidade) às decisões que levaram Edward Snowden a revelar os documentos que revelou. Seja como for, em defesa do trabalho cinematográfico que temos à nossa frente, importa sublinhar a ambivalência dramática que se instala: no limite, Snowden é uma peça solitária de um aparato global que transfigurou todas as relações humanas. Ele que entrou na CIA “para ajudar o seu país”, é, afinal, um filho pródigo de uma paternidade ambivalente, no filme representada pelas personagens do seu austero chefe (Rhys Ifans) e de um sarcástico veterano (Nicolas Cage).
Num plano estritamente ideológico (se é que a fascinante complexidade do filme permite tal separação), podemos questionar Stone pela quase ausência de algum contraponto histórico (que começa, obviamente, na herança do 11 de Setembro). A saber: porque é que a história de Snowden quase não refere a conjuntura geopolítica em que se processa a sua odisseia? O certo é que esse “silêncio” faz parte da visão do mundo do próprio Snowden que, ingenuamente ou não, parece acreditar numa espécie de utópica “purificação” das relações entre política e tecnologia.
Evitando reduzir o mundo a uma dicotomia de “bons” e “maus”, o filme de Stone acaba por possuir o valor radical de uma crónica sobre as contradições do nosso tempo. A notável interpretação de Joseph Gordon-Levitt é um espelho cristalino da saga de Snowden. Em boa verdade, ele queria apenas ser ouvido — o filme confirma que o conseguiu.