Meryl Streep corre o "risco" de ser novamente nomeada para um Oscar graças a Florence, uma Diva Fora de Tom: se isso acontecer, será a 20ª vez — este texto foi publicado no Diário de Notícias (3 Setembro), com o título 'Uma actriz em que o espectador acredita'.
Podemos voltar a dizer o mais simples? Tão simples como isto: o maior talento de um actor ou uma actriz de cinema é a capacidade de nos fazer acreditar na personagem que interpreta. Naturalismo? Nada disso. Nada a ver com a “transparência” da telenovela. A personagem pode ser um símbolo histórico, mas também pode ter viajado a partir de uma galáxia distante. Pode encantar pela sua beleza ou existir assombrada por traços monstruosos. O certo é que, quando acreditamos, vamos para onde o intérprete nos quiser levar. Assim acontece com Meryl Streep em Florence, uma Diva Fora de Tom: a sua composição de Florence Foster Jenkins (1868-1944), uma dama da sociedade que cantava de forma desastrosa mas almejava chegar ao palco sagrado do Carnegie Hall, em Nova Iorque, é uma notável proeza de riso e tragédia, notas gritadas e silêncios comoventes.
Em entrevista à revista Vanity Fair (12 Agosto), Stephen Frears, o realizador de Florence, uma Diva Fora de Tom, lembra que propôs a Meryl Streep um método de trabalho muito particular: não representar as cenas de canto em playback (como ela própria chegou a admitir), mas filmá-las com som directo. Não só a actriz aceitou o desafio, como o realizador reconhece que os resultados superaram as suas expectativas: “Foi absolutamente brilhante.” Mais do que isso, deu nova vida ao fascinante paradoxo de Florence: “Cantou correctamente todas as notas falsas.”
O primeiro Oscar
Essa capacidade de transfiguração, aliada a uma indomável exigência de perfeição, define a imagem de marca de Meryl Streep desde o começo da sua carreira. No seu livro Her Again: Becoming Meryl Streep (Harper, 2016), o jornalista Michael Schulman, da New Yorker, narra o insólito processo de casting que lhe valeu o papel de Joanna Kramer, a mulher que quer o divórcio de Ted Kramer, interpretado por Dustin Hoffman, em Kramer Contra Kramer (1979).
Quando teve uma primeira conversa com o realizador Robert Benton, o produtor Stanley R. Jaffe e o próprio Hoffman, o seu impacto foi pouco mais do que discreto. Foi mesmo equívoco. Meryl Streep falou pouco, definindo de modo vago e hesitante a personagem de Joanna. Aliás, desconcertou os seus interlocutores porque, de facto, tinha sido convocada como possível intérprete de outra personagem, de nome Phyllis, uma mulher com quem Ted acaba por ter uma relação efémera (que viria a ser interpretada por JoBeth Williams). Foi Hoffman quem compreendeu de imediato o seu estado de espírito, uma vez que sabia da morte recente do seu companheiro, o actor John Cazale, vitimado por cancro no pulmão aos 42 anos (o par integrara, um ano antes, o elenco de O Caçador, de Michael Cimino). Benton e Jaffe sentiram que a vulnerabilidade de Meryl Streep podia ser um trunfo suplementar na construção da personagem — o filme valeu-lhe uma segunda nomeação na categoria de melhor actriz secundária (O Caçador fora a anterior) e o seu primeiro Oscar.
A partir daí, temos podido assistir a uma das histórias mais gloriosas de Hollywood nas últimas décadas. Desde logo, por razões estatísticas: Meryl Streep tornou-se recordista de nomeações para os Oscars (19 no total), tendo ganho mais duas vezes, na categoria de actriz principal, com A Escolha de Sofia (1982), de Alan J. Pakula, uma memória pungente do Holocausto baseada no romance de William Styron, e A Dama de Ferro (2011), retratando Margaret Thatcher, sob a direcção de Phyllida Lloyd. Depois, porque a sua sofisticação expressiva lhe permite oscilar do trágico ao cómico, passando pelo canto: se Florence Foster Jenkins implicava cantar mal de modo convincente, a sua personagem de Ricki e os Flash (2015), de Jonathan Demme, era mesmo uma cantora (rock) que Meryl Streep assumia com invulgar energia e subtileza.
É surpreendente o modo como tem sabido superar muitos clichés biográficos em torno de personagens verídicas como Thatcher ou a escritora Karen Blixen em África Minha (Sydney Pollack, 1985), porventura o maior fenómeno de culto de toda a sua filmografia. Mas é também verdade que a pluralidade dos seus registos passa pela depuração romântica de A Amante do Tenente Francês (Karel Reisz, 1981), a fantasia cómica de A Morte Fica-vos Tão Bem (Robert Zemeckis, 1992) ou a respiração melodramática de As Pontes de Madison County (Clint Eastwood, 1995).
E não deixa de ser irónico que, em tempos recentes, Meryl Streep (67 anos) tenha sido uma das personalidades de Hollywood que mais sistematicamente denunciou o preconceito que leva a marginalizar as actrizes quando atingem uma certa idade, defendendo a necessidade de contrariar a celebração artística da “juventude” eterna. Na prática, ela é, por certo, uma das excepções, conseguindo gerir a carreira sem mascarar as marcas da própria passagem do tempo.
Afinal, como muitos grandes actores do período clássico (lembremos Katharine Hepburn, única intérprete, entre mulheres e homens, com quatro Oscars de interpretação), também Meryl Streep teve uma formação essencial através do teatro, tendo passado pelo Public Theatre, do lendário Joseph Papp, em Nova Iorque. Aí aprendeu a ter consciência dos efeitos que a arte de representar pode desencadear num espectador — sendo simples, é também o mais difícil.