A TRAIÇÃO DAS IMAGENS (1929) |
O homem é um ser de linguagem, ou melhor, que habita uma casa que é a linguagem. Caminhos cruzados da música e do cinema, da pintura e da filosofia — este texto foi publicado no Diário de Notícias (5 Setembro), com o título 'A linguagem já não é o que era'.
Provavelmente, a culpa é de René Magritte. Em 1929, o surrealista belga desenhou o seu célebre cachimbo e, num gesto de ambígua inocência, acrescentou-lhe a perturbante legenda: “Isto não é um cachimbo.” Brincando com a nossa crença naquilo que vemos, claramente visto, chamou mesmo ao seu quadro A Traição das Imagens.
A maldição, convenhamos, já vinha de trás. Da pintura à literatura (Ulisses, de James Joyce, tinha sido publicado em 1922), passando pelo cinema (as duas decisivas longas-metragens de David W. Griffith, O Nascimento de uma Nação e Intolerância, são de 1915 e 1916, respectivamente), a modernidade definiu-se também, perversamente, pela arte de convocar o leitor/espectador para experiências estranhas, porventura contrárias, às evidências rudimentares da vida comum. E de acordo com uma lógica que se prolonga até ao nosso dramático presente: em 2011, proibido de fazer cinema pelo Tribunal Islâmico Revolucionário, o iraniano Jafar Panahi rodou um filme clandestino a que, convocando o impoluto Magritte como testemunha de defesa, chamou Isto Não É um Filme.
Cachimbos, odisseias ou filmes, a questão é sempre a mesma. A saber: o ser humano define-se, antes de tudo o mais, como um artesão da linguagem. O mundo não se oferece como um palco transparente, disponível para uma reprodução automática e sem responsabilidades (por isso, a “reality TV” é uma sinistra impostura cultural e afectiva). Vemos, descrevemos e pensamos o mundo enquanto seres de linguagem. Curiosamente, notícias chegadas por estes dias do outro lado do Atlântico dão conta do modo como o novo livro de Tom Wolfe, The Kingdom of Speech (Little Brown & Company), proclama essa singularidade humana, começando por desafiar a teoria darwinista da evolução.
Lidar com os sobressaltos da linguagem tornou-se mesmo uma desesperada necessidade cognitiva — o que somos, e como somos, através daquilo que dizemos e representamos? Caso contrário, corremos o risco de entrar numa sonolência sem recurso em que as significações do mundo ficam prisioneiras das banalidades existenciais proferidas pelos “famosos” e seus derivados.
Resistamos, por isso, à noção corrente de “especialização” em que tudo parece esquemático e pré-determinado, desde a disposição das forças militares no Médio Oriente até à utilização das ervas aromáticas por um iluminado “chef” de cozinha. De facto, vivemos num mundo transversal, de muitos cruzamentos e contaminações.
Na música, por exemplo. Daniel Lanois, produtor canadiano ligado a alguns discos emblemáticos de nomes fulcrais da música popular (U2, Brian Eno, Bob Dylan, etc,), acaba de lançar um álbum fascinante. A sonoridade de um tipo muito particular de guitarra (pedal steel), integrada em enigmáticas texturas electrónicas, faz-nos perguntar, afinal, que linguagem musical é esta? Uma primeira resposta está no título do próprio álbum: Goodbye to Language.
Adeus à linguagem? Sim, sem dúvida. Não porque possamos sair dela, antes porque a proliferação de circuitos do mundo contemporâneo — a mitologia cândida da “globalização” — tende a fazer-nos esquecer a nossa condição de “habitantes” da própria linguagem. “A linguagem é a casa que o homem habita”, lembrava Jean-Luc Godard, socorrendo-se das lições de Heidegger, em filmes como Viver a sua Vida (1962) ou Duas ou Três Coisas sobre Ela (1967).
É uma história plena de humor, esta da nossa condição de animais que adquiriram o poder da linguagem. Aliás, só podemos sorrir quando verificamos que Lanois, precisamente, “roubou” o título do seu álbum a Adeus à Linguagem, o filme em 3D que Godard lançou em 2014. Na sua radical beleza, até mesmo o cão do cineasta, de nome Roxy, era um ser abençoado pelas maravilhas da linguagem. Isto não é uma crónica.
>>> "Os limites da linguagem" — extracto de Duas ou Três Coisas sobre Ela.