O Abraço da Serpente esteve nos Oscars, em representação da Colômbia, e é uma bela revelação — este texto foi publicado no Diário de Notícias (7 Abril), com o título 'Entre o natural e o sobrenatural'.
O impacto global da excelente produção húngara O Filho de Saul, consagrada com o Oscar de melhor filme estrangeiro, terá deixado na sombra os outros títulos nomeados. E seria uma pena que pelo menos um deles, O Abraço da Serpente, fosse remetido para uma qualquer galeria de “falhanços”. Antes do mais por causa de um valor inerente àquele prémio da Academia de Hollywood: a capacidade de transformar uma história particular numa narrativa de delicado apelo universal.
O filme do colombiano Ciro Guerra reflecte, aliás, uma tendência que, nos últimos anos, tem marcado os mais diversos contextos de produção: a recuperação de histórias verídicas, capazes de convocar temas transversais de ressonâncias mais ou menos globais (recordemos o exemplo do vencedor absoluto dos Oscars, O Caso Spotlight, relançando um estimulante debate sobre a deontologia jornalística).
O Abraço da Serpente organiza-se como um ziguezague temporal que, ao longo da primeira metade do século XX, liga os encontros de dois exploradores da Amazónia (uma alemão, outro norte-americano) com um sobrevivente de uma tribo. As singularidades desta fascinante personagem, de nome Karamakate, vão marcar de forma indelével os dois investigadores, abrindo a hipótese de uma relação com a natureza enraizada num conhecimento muito concreto dos respectivos elementos (em particular do poder curativo de algumas plantas) e, ao mesmo tempo, aberta a um entendimento mágico da terra.
No plano cinematográfico, Ciro Guerra trata tais relações humanas através de uma contagiante austeridade documental, a preto e branco, em que se vai insinuando o apelo sobrenatural (a palavra é justíssima) de um outro entendimento da existência humana, seus enigmas e perplexidades. Nesta perspectiva, O Abraço da Serpente ilustra também uma questão transversal, importantíssima, na nossa conjuntura audiovisual. A saber: a possibilidade de superar o “naturalismo” simplista de muitas formas narrativas da televisão, celebrando o modo como as imagens (e os sons) nos podem ajudar a conhecer o mundo, questionando os limites do próprio gesto cognitivo que protagonizamos.