Um acontecimento cinematográfico que vem de Marrocos, recusando qualquer visão do país em tom de "postal-ilustrado" — este texto foi publicado no Diário de Notícias (6 Março), com o título 'Um realismo vindo de Marrocos'.
Terminada a temporada dos Oscars, importa reconhecer que, antes e depois, o mercado cinematográfico português continua marcado por uma salutar diversidade. E a observação não envolve qualquer reticência perante o actual cinema americano — de facto, sou dos que pensam que os prémios da Academia de Hollywood envolveram algumas admiráveis propostas temáticas e estilísticas.
Importa também conservar os olhos e ouvidos abertos a experiências porventura menos espectaculares, em todo o caso marcadas por referências culturais bem diferentes. É o caso do filme Muito Amadas, assinado por Nabil Ayouch, cineasta francês de ascendência marroquina, sobre um grupo de prostitutas em Marraquexe, nos dias de hoje.
Banido pelo governo marroquino [Le Monde: a exibição em Cannes], Muito Amadas possui uma evidente dimensão de panfleto social. A existência das protagonistas, interpretadas por quatro excelentes actrizes — com destaque para Loubna Abidar, nomeada para o César de melhor intérprete feminina —, emerge num contexto em que o machismo mais violento se cruza com a degradação de muitos laços sociais e familiares e, em particular, com situações de fragilidade financeira ou mesmo de pobreza.
Em todo o caso, a contagiante energia do trabalho de Ayouch não decorre de um discurso estritamente social, antes do modo como tal discurso encarna num metódico labor cinematográfico. Estamos, assim, perante mais um exemplo de uma tendência realista que, hoje em dia, podemos encontrar nos mais variados contextos — desde as propostas dramáticas do americano J. C. Chandor (como o admirável Um Ano Muito Violento) até à renovação da tradição russa por Sergei Loznitsa (No Nevoeiro), passando por algumas experiências portuguesas, por exemplo de João Canijo (Sangue do Meu Sangue).
Os contrastes dos títulos que podemos citar são reveladores de uma dimensão essencial. Não se trata, de facto, de defender um conceito universal, muito menos unívoco, de realismo. Trata-se, isso sim, de reconhecer que o desejo cinematográfico de dar conta da vida vivida envolve os mais diversos realismos, numa pluralidade capaz de nos fornecer pistas interessantíssimas para superarmos clichés de (des)conhecimento.
Tal fenómeno envolve uma atitude de resistência — que, sendo estética, é eminentemente política — a todos os formatos, nomeadamente de raiz televisiva, que tendem a reduzir a “realidade” a padrões simplistas ou estupidificantes. Observe-se, entre nós, a permanência dos horrores da “reality TV”, todos os dias multiplicados perante o silêncio ensurdecedor dos discursos políticos.
No caso de Muito Amadas, está também em jogo a recusa dos estereótipos turísticos que, no contexto europeu, tendem a descrever o norte de África de modo pitoresco, tendencialmente anedótico. Tanto bastaria para conferir ao trabalho de Ayouch o valor mais básico, mas também mais essencial, de qualquer realismo: não desistir de ver e pensar a complexidade do real.