Graças a Quentin Tarantino, o formato de 70 mm volta a ser assunto da indústria cinematográfica e da cinefilia — este texto foi publicado no Diário de Notícias (1 Fevereiro), com o título 'Como Quentin Tarantino está a relançar a grandiosidade dos filmes em 70 mm'.
Quando, há cerca de dois anos, Quentin Tarantino anunciou que o seu novo filme, o “western” intitulado The Hateful Eight (lançado nas salas portuguesas como Os Oito Odiados), ia ser rodado em película de 70 mm, a comunidade cinematográfica mostrou-se dividida. Mesmo os mais entusiasmados com o regresso a esse formato tão ligado à mitologia do grande espectáculo, não puderam deixar de se questionar sobre as respectivas possibilidades de difusão: afinal, com a passagem das salas à projecção digital, onde seria possível ver o filme?
Na prática, em todo o mundo, só foi possível recuperar ou voltar a equipar com projectores de 70 mm cerca de uma centena de salas, em 44 países. Na maior parte dos mercados, incluindo Portugal, The Hateful Eight é difundido apenas nas normais cópias digitais; mesmo num mercado tão importante como o britânico, o filme foi lançado numa única sala com 70 mm (Odeon Leicester Square, em Londres).
Seja como for, a opção técnica de Tarantino e do seu talentoso “cinematographer”, Robert Richardson (nomeado para o Oscar de melhor fotografia), conseguiu desencadear efeitos práticos e simbólicos que estão longe de ser banais. Desde logo, porque a recuperação do formato — Tarantino e Richardson contaram com a colaboração dos laboratórios Panavision que puseram à sua disposição as lentes originais do 70 mm — parece estar a gerar um inusitado revivalismo: Batman v. Super-Homem: o Despertar da Justiça, a estrear em Março, vai também ser lançado com um número significativo de cópias em 70 mm; isto sem esquecermos que o formato já tinha sido utilizado por Christopher Nolan na rodagem de algumas sequências de O Cavaleiro das Trevas Renasce (2012) e Interstellar (2014). Ao mesmo tempo, reabre-se a hipótese de uma revalorização (cultural e comercial) das superproduções que, há cerca de meio século, consagraram o 70 mm.
Clássicos como West Side Story (1961), de Jerome Robbins e Robert Wise, Lawrence da Arábia (1962), de David Lean, ou My Fair Lady (1964), de George Cukor, marcaram um tempo em que a grandiosidade das salas e, consequentemente, o gigantismo dos ecrãs — lembremos o desaparecido, e glorioso, cinema Monumental em Lisboa — eram factores essenciais na mobilização dos espectadores. Sem esquecer, claro, que a película de 70 mm (cujos fotogramas, como a designação sugere, correspondem a cerca do dobro do tradicional 35 mm) reproduz os mais discretos detalhes de corpos, objectos e cenários com uma precisão inigualável (que, em qualquer caso, a evolução do digital já consegue integrar com apurado grau de fidelidade).
Ironicamente, a idade de ouro do 70 mm — que podemos situar entre Ben-Hur (1959) e 2001: Odisseia no Espaço (1968) — está longe de se explicar apenas por factores especificamente cinematográficos. Podemos mesmo considerar que teve um prólogo no aparecimento, em meados da década de 50, dos chamados formatos anamórficos, com destaque para o CinemaScope (com uma largura de imagem cerca de 2,5 vezes maior que a altura). A grandeza das imagens de filmes como A Túnica (Henry Koster, 1953), Alexandre, o Grande (Robert Rossen, 1956) ou A Ponte do Rio Kwai (David Lean, 1957) apostava em atrair os muitos espectadores que começavam a ficar em casa para ver... televisão!
Agora, a tendência relançada por Tarantino poderá ser também um factor de atracção para os espectadores que perderam o hábito de frequentar as salas escuras. Uma coisa é certa: a qualidade visual de um filme rodado em 70 mm não cabe, literalmente, no espaço do ecrã do nosso computador.