Ao falar da sua personagem em Carol, de Todd Haynes, Cate Blanchett lembra como é importante não esquecer que ela vive a história de um amor proibido por lei — este texto foi publicado no Diário de Notícias (31 Janeiro), com o título '“Esta é a história de Romeu e Julieta em versão Julieta e Julieta'.
Uma entrevista com Cate Blanchett em pleno Festival de Cannes é tudo menos uma entrevista. Enfim, cada um tenta dar o seu melhor... Desde logo, porque a célebre “round table”, ou seja, uma conversa com cinco ou seis jornalistas, é tudo menos “round” (passa-se num recanto do barulhento terraço de um hotel) e acaba por incluir uma dúzia de entrevistadores, alguns dos quais pouco motivados pelo cinema, mais apostados em saber como é que a actriz equilibra os compromissos profissionais com as tarefas da maternidade...
Fala-se do filme de Todd Haynes, Carol, em que a prodigiosa Blanchett contracena com Rooney Mara, na história do amor de duas mulheres, na década de 1950, tendo como inspiração o primeiro romance de Patricia Highsmith (originalmente assinado com o pseudónimo “Claire Morgan”).
Consciente da delicadeza temática e do poder simbólico do filme, a actriz sugere um resumo exemplar: “Para Todd Haynes, tratava-se de contar de novo a história de Romeu e Julieta, mas agora com Julieta e Julieta. Claro que é importante que sejam duas mulheres, mas o que conta é a experiência de aprendizagem que decorre de uma relação profunda com alguém.” No cerne dessa tragédia íntima está a dificuldade de nomear aquilo que se vive de forma tão intensa: “Carol e Therese descobrem que não podem dar um nome ao amor que sentem, mas também que esse amor é ilegal, é mesmo considerado um crime.”
Pergunto-lhe até que ponto o conhecimento do contexto social e legal da acção foi importante na construção do filme. Lembrando que foi um factor “absolutamente vital”, Blanchett explica o método de trabalho de Haynes: “Estabelecemos aquilo que se pode chamar um alinhamento de factos políticos e costumes sociais, desde o fim da Segunda Guerra Mundial até ao começo dos anos 60. De facto, a década de 50 não é um bloco homogéneo. Com a guerra, houve muitas mulheres que tiveram a possibilidade de aceder a actividades que eram exclusivamente masculinas. Depois, num certo sentido, foram de novo remetidas para a cozinha. Veio a Guerra Fria, a tecnologia nuclear e toda uma subterrânea transformação da politica americana.” Filme político? O rótulo não é importante, mas “os debates que suscita poderão ser abertamente políticos."
Curiosamente, a carreira de Blanchett tem sido pontuada pela interpretação de algumas figuras lendárias. Também sob a direcção de Haynes, em I’m Not There (2007), interpretou... Bob Dylan! E foi Katharine Hepburn em O Aviador (2004), de Martin Scorsese. Será que representar uma personagem verídica envolve um desafio especial? “Sim, quando é alguém do cinema.” Como foi, então, com Hepburn? “Pânico total! Mas o que é que se faz quando Scorsese nos convida? Viramos as costas? Além disso, ele ajudou-me imenso, dizendo-me que eu podia ser loura, andar sempre de calças e não me preocupar em parecer-me com ela...” Se o leitor conseguir imaginar a deliciosa imitação do falar sincopado de Scorsese, poderá compreender a alegria com que Blanchett recorda a experiência.
Enfim, questão clássica, mas incontornável: até que ponto uma personagem forte se imiscui na identidade da própria actriz? Curiosamente, ao contrário de outros profissionais, Blanchett não resiste ao tema: “Há, sem dúvida, qualquer coisa que fica, um resíduo da personagem que passa a viver connosco. Ser actriz é isso: podemos enriquecer através das personagens. Sentimos o mesmo quando lemos um romance de um grande escritor: o mundo expande-se.”
Segredos da profissão? Talvez o menos secreto: um trabalho contínuo e paralelo no teatro: “O teatro ajuda-nos a compreender a responsabilidade que temos perante os espectadores.” Convém, por isso, tomarmos nota nas nossas agendas: lá mais para o final do ano, Cate Blanchett vai ter a sua estreia na Broadway, numa peça de Chekhov.