O filme Spotlight é um caso exemplar de revalorização do mais subtil cinema político de Hollywood — este texto foi publicado no Diário de Notícias (28 Janeiro), com o título 'A tradição liberal'.
Vivemos um tempo de endeusamento da “informação” em que, com frequência, a representação pública (sobretudo televisiva) do trabalho jornalístico se confunde com a arte de fazer perguntas mais ou menos insultuosas a personalidades públicas. Fazem-nos falta outras representações que reponham o jornalismo no difícil labirinto da verdade. Entenda-se: da produção da verdade, desse árduo labor de interrogação e compreensão.
É isso que está em causa num filme tão didáctico e emocionante como O Caso Spotlight. Ao evocar a investigação dos casos de abuso sexual de crianças por membros da Igreja Católica (que valeu, em 2003, um Prémio Pulitzer aos jornalistas de The Boston Globe), Tom McCarthy está muito longe de qualquer especulação gratuita, a começar por aquela que consistiria em desfiar uma piedosa lista de vítimas. Nada disso. As vítimas estão lá. Há mesmo uma espantosa sequência em que uma delas expõe à jornalista interpretada por Rachel MacAdams as suas memórias traumáticas, mas tudo é exposto a partir do ponto de vista do grupo de trabalho jornalístico. E da sua interrogação essencial: quando é que a acumulação de informações adquire a consistência própria de um discurso (descritivo e interpretativo) que faça sentido tornar público?
Deparamos, assim, com uma fascinante actualização da tradição liberal do cinema americano tão exemplarmente expressa num clássico como Os Homens do Presidente (1976), de Alan J. Pakula, sobre o Caso Watergate. Convém, por isso, lembrar que, neste contexto, a palavra “liberal” não é um emblema político, muito menos partidário. O liberalismo cinematográfico enraíza-se no valor sagrado do indivíduo e no direito de todos à verdade dos factos. Que seja Hollywood a lembrar-nos isso, eis um interessante motivo suplementar de reflexão.