A obra de Jacques Rivette convoca-nos para contínuas e fascinantes releituras — este obituário foi publicado no Diário de Notícias (30 Janeiro), com o título 'O cinema morreu, mas o teatro irá salvar-nos'.
Com a morte de Jacques Rivette (sexta-feira, dia 29 de Janeiro, contava 87 anos), desaparece uma figura nuclear da história moderna do cinema francês. Aliás, pode bem dizer-se que a sua trajectória criativa simboliza de forma exemplar as convulsões dessa história. Desde logo, porque com Jean-Luc Godard, Eric Rohmer, François Truffaut e Claude Chabrol, Rivette foi nas décadas de 50/60 uma das personalidades emblemáticas da Nova Vaga. Depois, porque integrou os Cahiers du Cinéma, revista estandarte do movimento, assumindo a “duplicidade” de crítico e cineasta (foi mesmo chefe de redacção no período 1963-65). Finalmente, porque ao longo de três dezenas de filmes — o derradeiro, 36 Vistas do Monte Saint-Loup, surgiu em 2009 — foi sempre um genuíno experimentalista, interrogando as fronteiras narrativas e existenciais do próprio cinema.
A sua visão não pode ser dissociada de uma longa e multifacetada convivência com os elementos teatrais. Na primeira longa-metragem, Paris Nous Appartient (1961), baralhando os limites tradicionais de documentário e ficção, colocava em cena um dispositivo a que regressaria, obsessivamente, frequentes vezes: um grupo de actores ensaia uma peça (Péricles, Príncipe de Tiro, de Shakespeare) e o trabalho de encenação cruza-se de forma ambígua, esteticamente perversa, com a vida privada das personagens.
Foi A Religiosa (1966) que colocou o nome de Rivette no mapa da cinefilia e também das polémicas. Baseado no romance de Denis Diderot — o título original é, aliás, Suzanne Simonin, la Religieuse de Diderot —, o retrato de uma jovem do século XVIII forçada a entrar para um convento (interpretada por Anna Karina) suscitou grandes convulsões nos meios religiosos e políticos de França, a ponto de alguns sectores defenderem a sua proibição. O filme acabaria por estrear, interdito a menores de 18 anos, não sem que antes Godard tivesse publicado uma célebre e contundente carta a André Malraux, então ministro da Cultura (identificando-o como ministro da “Kultura”). Entre nós, em 1975, foi o mais mítico sucesso do desaparecido cinema Quarteto, programado por Pedro Bandeira Freire.