Não apenas filmar a saga aventurosa do Oeste, mas praticar o cinema como uma aventura que desafia a própria natureza: eis o projecto de The Revenant — este texto foi publicado no Diário de Notícias (21 Janeiro), com o título 'O regresso do “western” ao realismo das paisagens naturais'.
Estamos, afinal, perante uma revisão crítica da expansão para Oeste. A desencantada descrição de um mundo sem heróis imaculados, marcado por formas de extrema violência entre grupos e indivíduos, faz recordar os chamados “westerns” críticos das décadas de 60/70, de que A Quadrilha Selvagem (1969), de Sam Peckinpah, poderá ser uma esclarecedora referência simbólica. O negócio das peles de castor envolve, assim, três factores fundamentais: a luta pela sobrevivência em regiões de difícil acesso; as relações tensas com os índios, eles próprios divididos em várias tribos (protagonizando diferentes conflitos ou cumplicidades com os brancos); enfim, uma frágil estrutura de poderes em que o lugar de cada um oscila entre as imposições da lei e o primitivismo de um combate mitológico com os elementos naturais.
Certamente não por acaso, a personagem de Hawk (Forrest Goodluck), nascido da relação de Glass (DiCaprio) com uma mulher índia, adquire um papel decisivo no desenvolvimento trágico do filme. Ele é, afinal, a expressão muito real de um mundo híbrido em que o esquematismo “branco/índio” dos “westerns” mais simplistas, pura e simplesmente, não existe. É por ele que Glass vai viver uma saga de sobrevivência cujo ponto de fuga simbólico se confunde com a procura de uma justiça humana que, no limite, poderá estar ligada a desígnios divinos.
Este é, de facto, um filme em que a crueza realista dos lugares coexiste com o pressentimento de que o brutal ciclo de vidas e mortes pode ser a expressão, também ela cruel, mas coerente, de uma outra ordem das coisas. No sistema simbólico de O Renascido, os enigmas dessa ordem, e as insólitas vias da sua justiça, pertencem ao domínio do sagrado.